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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Nunca percebi porque se chama Magusto à tradição de comer castanhas assadas com Jeropiga.
Segundo o Priberam:
- Castanha - "Origem etimológica: latim castanea, - ae"
- Assada - "Origem etimológica: latim asso, - are"
- Magusto: "Origem etimológica: origem duvidosa, talvez do latimustus, - a, - um, particípio passado de uro, urere, queimar."
No que parece estarem todos de acordo é que há uma lenda associada a esta festa, que se relaciona com o bom sentimento de um soldado romano Martinho de Tours (Martinus Turonensis) que viveu no século IV e foi, posteriormente, o São Martinho. Este Santo, que não comungava das novas ideologias da pós-verdade e da ultra-direita tramontana, egoísta, individualista, racista, xenófoba e sexista, tendo-se aproximado de um pobre quase nu, num dia frio e chuvoso, resolveu dividir a sua capa em duas, usando a espada, para que o coitado se cobrisse. Deu-se então um milagre (que deve ter pesado na sua canonização) e o dia tornou-se suave e solarengo - daí o Verão de São Martinho. A ciência, no entanto, embora confirme o fenómeno, é bem mais desinteressante que a história popular:
"(...) Ora, este evento climático, tem uma explicação meteorológica. O período de transição entre o verão e o inverno traduz-se na união do anticiclone subtropical do Atlântico Norte (Anticiclone dos Açores) com o Anticiclone da Sibéria. Durante este processo, a variabilidade do estado do tempo é elevada, com sucessivas passagens da Frente Polar. Contudo, no período em torno da primeira década de Novembro, ocorre em média um abrandamento e, até, uma inversão do fluxo zonal (de oeste) em altitude. Tal inversão, traduz num enfraquecimento ou mesmo bloqueio da Frente Polar sobre a Europa do Sul e, por vezes, verificando-se a predominância de dias com menos nebulosidade e menos precipitação, ou seja, uma relativa melhoria do estado do tempo. (...)"
É uma altura em que, em nome de todos os bons rituais cristãos e familiares, se podem comer castanhas cozidas e / ou assadas, acompanhadas de Jeropiga (ou vinho novo). Ao contrário do Magusto, que se celebra em terras portuguesas, galegas e até estremenhas, em áreas em que a língua (e os costumes) têm origens galaico-portuguesas, a Jeropiga é apenas portuguesa.
Resolvi fazer castanhas assadas no forno, usando esta receita.
1. Pré aquecer o forno a 200 graus
2. Lavar as castanhas
3. Fazer-lhes um golpe lateral, mas que não as divida (cuidado, que este procedimento é perigoso)
4. Colocar as castanhas num recipiente, cobertas com água a que se adicionou sal grosso
5. Ao fim de 20 minutos, espalham-se pelo tabuleiro do forno e cobrem-se com mais sal grosso
6. Vão 40 minutos a assar (eu revolvi-as ao fim de 20 minutos)
7. A seguir tempera-se com alecrim, deitam-se numa tigela e cobrem-se com um pano
8. Dez minutos depois, comem-se
Não ficaram nada mal. A Jeropiga já tinha desaparecido do supermercado, por isso foi substituída por Moscatel de Favaios.
E, na busca de um momento musical que representasse esta ocasião gastronómico-religiosa-artesanal, tenho a certeza de que deixaria orgulhoso alguém que, tantas vezes, descobriu as canções mais extraordinárias e hilariantes, a propósito de tudo e de nada.
Espero não te desmerecer, meu querido companheiro de tantos Magustos.
Republico um post que tem 10 anos.
O triste espetáculo a que temos assistido por parte dos agentes da Justiça, com buscas e acusações e inquéritos e escutas telefónicas, com divulgações cirúrgicas das mesmas, comissões parlamentares vergonhosas, enfim, a delapidação das Instituições.
Infelizmente, acho que este meu post é bem atual.
No intervalo destes últimos 40 anos, o mundo mudou radicalmente. O desenvolvimento tecnológico exponencial permitiu maior longevidade e qualidade de vida, nos países a que se convencionou chamar desenvolvidos, maior riqueza e bem-estar, melhor e mais rápida divulgação com as novas tecnologias de informação.
Politicamente a queda do muro de Berlim, o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque, a consolidação e alargamento da União Europeia, o despertar dos países da América do Sul, o crescimento da China e da Índia, os fenómenos de migração populacional, entre muitos outros, modificaram os equilíbrios existentes a um ritmo crescente, transformando o mundo numa massa globalizada, que cria riqueza mas que a concentra em cada vez menores núcleos de indivíduos, aumentando o fosso entre os que mais podem e os que nada podem.
Percebemos hoje que não tem havido capacidade, imaginação nem vontade de lidar com os novos problemas que se avolumam – as alterações demográficas, o reacender dos ódios (xenofobia e racismo), as alterações climatéricas, a gestão dos recursos naturais. Em Portugal e na Europa assiste-se a um cada vez maior divórcio entre os governantes, os líderes dos partidos e os representantes das diversas associações sociais (sindicatos, confederações patronais, industriais, etc) e a restante população, aumentando a descrença neste regime democrático em que esses mesmos governantes, líderes e representantes são, por definição, eleitos livremente.1
A total subversão do papel da comunicação e da informação, fruto da revolução informática, transformou a vida, os direitos, as liberdades e o conceito de justiça numa paródia, assistindo-se à construção e destruição de carácter e de factos, mais falsos que verdadeiros, numa roda-viva dentada que tritura pessoas, instituições, conceitos. A manipulação das vontades e dos sentimentos globais movem as multidões e aqueles que deveriam ser os dirigentes deixam-se dirigir pelas ondas de protesto, indignação, fúria ou júbilo que todos os dias assolam a sociedade.
Estas organizações políticas não conseguem mobilizar os cidadãos, que deixaram de acreditar no que lhes é dito e repetido. A vida vai correndo à parte do que é cozinhado nas cadeiras dos diversos poderes e a raiva surda com o encolher de ombros vai sendo a atitude de quem quer manter a mínima sanidade mental. É confrangedor ouvir as frases gastas, os clichés, as palavras de ordem de governo, oposição, comentadores, economistas, sindicalistas e outros membros que gravitam na órbita desta elite, sem centelha, sem ideias, sem glória.
Ao contrário de tanta coisa que se modificou nos últimos 40 anos, nada se quer mudar nesta organização política formal, porque já é só formalidade e alimentação de interesses de poder, sem que importe a sociedade, o seu respirar, o seu viver, a sua felicidade. A riqueza e o poder deixaram de ser meios para serem fins, e o governo da nação deixou de se preocupar com a própria nação para se preocupar com os que a governam, num mundo ficcional e desligado da realidade.
Por isso é cada vez mais provável a queda do regime democrático. Ninguém acredita nele. Continuamos neste romance de faz-de-conta até que, provavelmente tarde de mais, outro regime ditatorial tome conta de nós. É que eu não conheço mais nenhum tipo de regime – democracia e ditadura podem ter várias práticas e vários nomes, mas são apenas essas as alternativas - democracia ou ditadura. E a avaliar pelo que se passa nesta Europa, o primeiro arrisca-se a ser trocado por um mais moderno, mais chique e mais na moda.
1 A última manifestação convocada pela CGTP parecia uma procissão, com andor e ladainhas e menos fulgor que as rezas de um velório.
Kaari Upson
Muitos, todos, nos sonhos e nas velas, no trabalho e no descanso, nas brincadeiras e nos ralhetes, momentos de enorme e profunda felicidade, momentos de abismal e eterna tristeza e solidão.
Mães uns dos outros, a quem sabemos um colo ou uma farpa quando precisamos, em grupos misturados de tecnologia e abraços, de palavras, de sentimentos.
Para todas as mães e pais, que dividem esta condição ampliando-a, que se multiplicam em múltiplos deles próprios para o serem, para o aprenderem, para a incontornável e incomensurável tarefa de ajudar a criar alguém, que saboreiem este como os outros dias que foram e que serão seus.
Abraçar alguém, homem ou mulher ou qualquer dos géneros alternativos, grande, pequeno, escuro, claro ou às cores, de qualquer nacionalidade, ter alguém que amamos, alguém que beijamos infinitamente.
Ter momentos em que nos juntamos, rimos ou sofremos, apoiamos ou discutimos, de felicidade, raiva, estremecimento ou distanciamento, ter alguém de pequenino que nos olha e apreende, que nos cheira, com o corpinho morno junto ao nosso, que nos dilata e preenche o coração, que nos inunda de ondas de amor.
O amor, sempre o amor. Amar alguém é a nossa mais preciosa característica, e não a temos que justificar a ninguém.
Família é a que temos, biológica ou não, constituída por aqueles que escolhemos, sejam quem forem, de onde forem, como forem, estejam aonde estiverem, melhor bem junto a nós.
E ninguém tem absolutamente nada a ver com isso.
Women’s Rights Pioneers Monument
É pesado.
Vamos assistindo àquilo que considerávamos valores universais, de civilização, civismo, direitos, liberdade e garantias, no sei de um mundo que se ia desenvolvendo.
Mas não. Nos EUA, preparam-se novas proibições às leis do aborto. Por toda a Europa, o revivalismo, o reaccionarismo e a forma despudorada com que se tem ouvido cada vez mais gente a defender o retrocesso a ideias ultramontanas, sendo muito difícil fazer frente a essa situação.
Não é o facto de as poderem defender que está em causa. A democracia é isso mesmo. Mas a descoberta de que há tantos a defenderem estatutos de dona de casa, a sensibilidade maior da mulher, papéis distintos para homens e mulheres reescrevendo tudo o que se passou nos últimos 100 anos, já não digo 50 anos, a lavagem cerebral quanto ao que apelidam ideologia de género, a obrigatoriedade de seguir padrões comportamentais e ideológicos, a negação da pluralidade de soluções e de vontades de afectos, é assustadora.
Por outro lado, ao fim de 2 dias de discussão do programa do governo, descobrimos que a promessa da redução do IRS feita pela AD era, pura e simplesmente, mentira, descarada e saloia, é deprimente.
São ares dos tempos.
A propósito do livro Village of Secrets que aqui referi, vi anteontem um filme - Au Revoir Les Enfants, de Louis Malle, que apenas conhecia de nome. É um filme de 1987 que recebeu, em 1988, 7 prémios César: melhor filme, melhor realização, melhor cenário original ou adaptado, melhor fotografia, melhor decoração, melhor som e melhor montagem.
O filme é baseado numa história verídica vivida pelo próprio Louis Malle. De uma simplicidade espantosa, sóbrio, silencioso, comovente, mostra mais um exemplo de como as comunidades religiosas, desta vez uma cristã, contribuíram para esconder e salvar crianças e adultos judeus, na França ocupada e colaboracionista.
O mais interessante do filme é o facto de não haver bons nem maus. Todos os personagens têm cambiantes e, por isso mesmo, faz-nos pensar na nossa própria ética, nos nossos próprios valores e de como estes podem ser postos à prova e serem, por nós, esquecidos.
Todos somos humanos, mas há heróis de todos os dias, que não precisam de caixas de ressonância nem de espelhos de aumentar. Porque são, eles mesmos, uma versão melhorada das nossas inquietudes e preocupações.
Num dia de trabalho intenso, como todos, em que as actividades domésticas na minha ausência também foram exuberantes, um jantarzinho a dois, numa bela cervejaria, seguida de uma noite de cinema.
A felicidade das pequenas coisas.
À la Clair Fontaine
Schubert
A publicidade é um espelho da evolução da sociedade. Pode ser muito interessante e inspiradora, inócua ou, simplesmente, abjecta.
Na última categoria considero o anúncio aos Cheetos, que passa inúmeras vezes na TV, e que apela ao egoísmo, à falta de sentimento de inter-ajuda e generosidade. É mesmo revoltante. Não percebo bem o que a campanha quer, se calhar é só tonta e incompetente, mas mostra muita coisa indecente.
Muitas vezes me questiono sobre os valores morais, a decência, a mudança dos mesmos e das suas definições ao longo dos séculos, o que é aceitável em 1500, 1900, 1940 ou 2024, de como, no século XXI, tantos comportamentos assustadores e inimagináveis começam a reaparecer. Como foram possíveis, no último século, e como estão eles a renascer?
A relatividade com que, hoje, se fala dos direitos, liberdades e garantias, a falta de sobressalto quando se ouvem líderes políticos defenderem atitudes, comportamentos, leis, que há uns anos nos pareceriam dignos de gente louca, terrorista ou criminosa, mostra bem que somos os mesmos, a mesma massa humana, e que tantos séculos de evolução pouco mudaram a nossa mente.
Mas na verdade, as pulsões da intolerância, da xenofobia e do racismo mantêm-se, por vezes mais abertas por vezes mais escondidas. O que permitiu às sociedades ocidentais fenómenos ditatoriais e de escravização das minorias, dos diferentes, a forma como rapidamente o anti-semitismo cresce e se espalha, como gente comum se torna em gente mesquinha, medrosa, criminosa (a tal banalidade do mal), é aquilo a que vamos assistindo, ciclicamente, ao longo da História.
Porque os sentimentos humanos, a generosidade e a solidariedade, o respeito pelo outro, a empatia e a compaixão, a certeza de que há atitudes, pensamentos e valores que são certos e que devem ser defendidos a todo o custo, mostram-nos que somos amálgamas imperfeitas mas que há sempre aqueles que são justos, mesmo com risco da própria vida.
O livro Village of Secrets - Defying the Nazis in Vichy France, é a história de muitos heróis simples e discretos, gente que, mesmo com as dificuldades da ocupação, com a fome e o roubo a que permanentemente estavam sujeitos pelos ocupantes alemães, aqueles que se negaram a colaborar com a regime de Vichy, numa comuna francesa junto à fronteira com a Suíça (Le Chambon-sur-Lignon), fizeram das suas casa, quintas, hotéis, cafés, escolas, caves, dos seus amigos, conhecidos, familiares, um exército civil de resistência, de esconderijos e refúgio para judeus, criação de identidades falsas e arquivos de nomes verdadeiros de crianças, juntamente com impressões digitais, para que, na esperança de um fim mais feliz, fosse possível aos milhares de martirizados que ajudavam, recuperarem o mínimo da sua identidade familiar e cultural.
Não nos enganemos. Podemos ser os libertadores e os algozes. Aquilo a que vamos assistindo pelo mundo, à destruição da decência, a criação de verdades e de factos alternativos, o desatar dos nossos mais baixos instintos, auguram o regresso da escuridão. Felizmente há sempre alguma luz. Que não a percamos de vista.
Entrudo - aldeias do xisto de Góis
É mesmo um Carnaval, ao que vamos assistindo.
Em vésperas de eleições, os bailes televisivos são feios, cacofónicos, inúteis, tristes, dispensáveis. Nem as máscaras são novas, nem bem feitas, nem vistosas. Apenas velhas, defeituosas e assustadoras.
Ouvem-se palavras e ideias, palavras sem ideias e ideias verdadeiramente inomináveis. Parece que, de repente, todos nos transformámos em gente grosseira, sem princípios nem valores, de uma estreiteza de vistas difíceis de compreender.
De tudo se faz tábua rasa - militares e paramilitares a fazer greve e filiados em partidos? Por que não? Ameaças de boicote às eleições? Qual o problema? Criminalizar os imigrantes sem autorização de residência? Os malandros que nos andam a tirar empregos e a islamizar?
As guerras na Ucrânia e israelo-palestiniana? Não têm interesse nenhum. O que é importante é o leilão das medidas, sem qualquer base estratégica, sem qualquer noção do que se quer, do rumo e do investimento (não só financeiro) que se entende melhor para o futuro.
Infelizmente, o Entrudo não acaba amanhã. Estaremos em corso sem paragem pelo menos até 10 de março. Em Portugal, nos EUA, na Europa. Mais tarde ou mais cedo, virá a Quaresma.
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