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If I can stop one heart from breaking,/ I shall not live in vain;/ If I can ease one life the aching,/ Or cool one pain,/ Or help one fainting robin/ Unto his nest again,/ I shall not live in vain. [Emily Dickinson]
O relatório da ERS.
Nota: "mercados substancialmente concentrados" é um eufemismo para regiões onde a oferta de serviços médicos é escassa, predominantemente privada, e com muito pouca concorrência.
Flachsscheuer in Laren
Sou médica. A minha especialidade tem-me mantido longe do furacão da COVID-19 mas, como todos os cidadãos, tenho tentado colaborar ao máximo para manter o país a funcionar ao mesmo tempo que se limitam contágios e se aguardam avanços terapêuticos e, principalmente, uma vacina.
Ninguém fica indiferente ao enorme empenho dos profissionais de saúde nesta época tão difícil, em que o seu trabalho, profissionalismo, generosidade e entrega são evidentes. Numa crise tão grave de saúde pública, eles são os mais visíveis obreiros da resistência. Aqueles que hoje, como todos os dias, em maior ou menor grau, cumprem o seu objectivo de vida que é cuidar e tratar doentes, com COVID-19, tuberculose, cancro, depressão, traumatismos, etc. E também solidão, tristeza, isolamento, empobrecimento. Porque todos os dias os profissionais de saúde são confrontados com essas realidades, para as quais se prepararam e para a quais continuam teimosamente a preparar-se dia a dia, ano a ano, durante toda a sua vida profissional.
E quando falo de profissionais de saúde estou a incluir todos os profissionais – médicos, de todas as especialidades, enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêutica, assistentes operacionais e técnicos, farmacêuticos, gestores, todos os que, diariamente, dão o seu melhor para manter a funcionar bem os serviços de saúde, nomeadamente o SNS que, agora, parece ter recebido o apoio unânime mesmo daqueles que sempre o acharam dispensável, que sempre têm propagado a sua agonia e a sua morte.
Mas a sociedade não se resume nem se esgota nos serviços de saúde e nos seus profissionais. Se eles nos merecem respeito, não menos respeito nos merecem todos os que, nos bastidores e com profissões e trabalhos menos visíveis e, sobretudo, menos glamorosos, permitem manter as cadeias alimentares e de serviços a funcionar, todos os que continuam a escoar produtos, a manter as portas dos supermercados e outras lojas abertas, pessoal de segurança, das Forças Armadas, das Câmaras Municipais, das empresas de recolha e tratamento de lixo, de limpeza das ruas, estabelecimentos hospitalares e outros, das casas mortuárias, dos cemitérios, da Assembleia da República, do Governo, os professores, os PTs, os músicos, os poetas, os actores, todos os artistas que nos entretêm e nos ajudam a não enlouquecer. De todos os invisíveis heróis que não são homenageados nem ovacionados pela sua competência, profissionalismo, generosidade e entrega.
Embora eu própria não faça parte do pelotão da frente no combate a esta pandemia, sinto-me orgulhosa pelo excelente trabalho que tem sido feito e que, neste país que nos habituámos a denegrir e a minimizar, tem mantido a situação controlada e dentro dos limites que possibilitam a adaptação possível ao desconhecido. Isto tudo apesar das inúmeras intervenções alarmistas, arrogantes, descontextualizadas e reivindicativas de estatutos especiais de muitos dos que deveriam ser os mais responsáveis e discretos interventores de todos. Não é assim que defendem os profissionais nem é assim que se dá confiança à população, sedenta de segurança e indicações precisas, quando há tanto que não se sabe e que se muda de dia para dia. Ninguém é especial, todos somos indispensáveis uns aos outros. É e sempre foi uma evidência, mas com esta pandemia tornou-se ainda mais evidente.
Estou a ouvir a conferência de imprensa com a Directora Geral de Saúde - Graça Freitas - e com a Ministra da Saúde - Marta Temido. Tal como eu, todo o país tem tido os olhos postos nestas duas mulheres.
Felizmente. Serenas, rigorosas, respondem calmamente às perguntas e vão dando conselhos e dicas para que possamos guiar-nos no meio da floresta de desinformação e ruído criminosos que ecoam por toda a parte. Este é um tempo de responsabilidade, dos nossos dirigentes políticos e nossa. Todos temos que estar à altura da situação.
Neste momento o mais importante é conseguirmos acalmar os nossos medos e ansiedades e destrinçar, de entre o emaranhado de notícias que nos chegam pelo facebook, pelo whatsApp, por email, pelo telefone, através de alguém que é amigo e ouviu de um amigo de outro amigo, as histórias mais descabeladas e disparatadas. Há de tudo, desde artigos científicos a demonstrar que os anti-inflamatórios como o ibuprofeno pioram a infecção, até às gravações de telefonemas de supostos médicos a dizerem que há milhares de infectados e de mortos.
Temos que ter confiança nas entidades de Saúde, nacionais e internacionais, cruzar informação, procurar em sites fidedignos como o da DGS, OMS, da ECDC, da CDC, etc. E se não tivermos a certeza perguntar e tentar esclarecer a veracidade antes de divulgar.
E temos que viver segundo os nossos valores universais de solidariedade e de compromisso com o outro, com o próximo, com os nossos próximos - pais, mães, filhos, amigos, vizinhos, conhecidos. Ajudar no que pudermos como ir ao supermercado ou à farmácia, esclarecermos o que soubermos, uma e outra e ainda outra vez, cumprirmos rigorosamente os preceitos da higiene e prevenção e não entrar em pânico.
Não invadir nem sobrecarregar os serviços de saúde, sempre, mas agora mais que nunca, é imperativo e decisivo. Não ir aos hospitais, às urgências, aos centros de saúde, a não ser que seja absolutamente indispensável. Temos que nos manter em casa e tratarmos o que pode ser tratado, recorrer à linha de apoio SNS24 - 808 24 24 24, aos nossos médicos, mas não inundar os serviços de saúde com o que se pode resolver de outra forma.
Temos tido uma liderança forte e serena - um Presidente como Marcelo Rebelo de Sousa, um Primeiro-ministro como António Costa, as duas mulheres que já referi. Temos um SNS público com gente competente, generosa e motivada, uma Segurança Social que nos pode apoiar. No meio deste enorme problema, temos motivos para confiar. As medidas estão a surgir, de forma proporcional às necessidades. Se tiverem que ser mais restritivas, não tenho dúvidas que serão tomadas.
A comunicação social é crucial. Se há uma oportunidade de o jornalismo recuperar credibilidade e importância (que nunca deixou de ter) é esta, desde que sejam, de facto, o paradigma do rigor e da informação, onde poderemos esclarecer as nossas dúvidas e acalmar os nossos receios. Também a eles se exige um enorme sentido de responsabilidade.
E vamos manter o país a funcionar. Depende de nós. E nós estaremos à altura.
Vale a pena ler o artigo no Expresso de ontem (07/Março) sobre Graça Freitas, a Directora Geral de Saúde.
Pelos vistos tem um excelente currículo e não deve ser fácil encontrar-lhe falhas em termos de competências técnicas. Por isso aparecem pequenas frases que nos indispõem quanto ao seu carácter - enerva-se, levando à dúvida se lhe faltarão os nervos de aço necessários para enfrentar a infecciosidade do vírus e a pressão do país. Também é "frontal para baixo e submissa para cima", pois permitiu o esvaziamento dos recursos da DGS, vindo de imediato a comparação com Francisco George e Constantino Sakellarides. Esses sim, conclui-se de imediato, faziam frente ao poder.
Ficamos ainda a saber que tem uma doença oncológica e que foi submetida a quimioterapia, que é muito dedicada à mãe e que cuida de orquídias o que, sinceramente, não sei o que interessa à generalidade da população. E ainda que tem atitude de avó e é paternalista.
Será que este tipo de artigo seria escrito se fosse um homem à frente da DGS? Será que a "emoção" e o tom condescendente seria empregue se o texto fosse sobre Francisco George ou Constantino Sakellarides? Alguém sabe se Francisco George se dedica à família e se gosta de cuidar de flores?
Já percebi que o Expresso é o porta-voz de quem quer denegrir o SNS, aproveitando todos os pretextos para amplificar as verdadeiras e as falsas falhas do SNS, dando visibilidade às opiniões dos que defendem que o SNS, o governo, a Ministra e esta DGS, não estão à altura das circunstâncias.
Mas será apenas por isso? Será que o facto de ser uma mulher não acolhe um subliminar machismo, tentando demonstrar-se a falta de capacidade de liderança de uma mulher, por muito competente e dedicada à causa pública que seja?
Temos ouvido repetidamente o Bastonário da Ordem dos Médicos dizer que os problemas das urgências pediátricas, obstétricas e outras são a demonstração da falência do Estado. E tem razão, pois é o Estado que tem a responsabilidade de desenvolver e implementar as políticas e as medidas que suportem uma cobertura de serviços de saúde, eficaz e suficiente, em todas as especialidades.
Mas talvez fosse mais importante perceber o porquê dessas insuficiências, e são diferentes das que temos visto brandir pelo mesmo Bastonário. Como já aqui realcei, a população médica está envelhecida, sendo de 50 anos a idade média dos especialistas que trabalham no SNS (50,8% têm mais de 50 anos). Significa isto que metade dos médicos especialistas podem ser dispensados de fazer urgências nocturnas e, dessa metade, cerca de 3/4 têm mais de 55 anos, o que os dispensa também de fazer urgências diurnas.
A consequência deste envelhecimento dos quadros é a necessidade que há de assegurar as equipas de urgência com a metade dos especialistas mais jovem, que se vê obrigada a aumentar exponencialmente as horas alocadas aos serviços de urgência - 2 e 3 ou mesmo mais dias (e noites) por semana, o que se torna insustentável. Qualquer médico, por muito dedicado à causa pública que seja, procura uma alternativa de forma a poder ter uma vida minimamente normal.
E o problema vai agravar-se, se observarmos com atenção os gráficos disponíveis na página 189 do Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS de 2018. Além disso, e ao contrário do que se diz para justificar a saída dos médicos do SNS - esta é expressiva predominantemente nos médicos mais velhos, que já não fazem urgências - a taxa de retenção global no SNS dos especialistas formados em 2018 foi de 83% (80% para a Pediatria, 84% para Ginecologia/Obstetrícia), desmentindo a narrativa da hemorragia dos jovens médicos para o sistema privado (págs. 2019 e 210).
Portanto não há médicos a mais, como a Ordem dos Médicos ao longo de décadas tem defendido (anteriores Bastonários e o actual). Há poucos, envelhecidos, mal distribuídos e mal aproveitados. A reorganização dos serviços de urgência, de que se fala há décadas, é absolutamente indispensável, com a concentração das urgências, de todo o tipo, apenas em 1 ou 2 hospitais da Grande Lisboa (para falar na Captital), de forma a optimizar os escassos recursos.
Há falência, sim, mas de organização, adaptação aos novos tempos, tal como houve de visão de médio e longo prazo. Porque se mantém fechada a hipótese de abertura de outros cursos de Medicina, abrindo a profissão a quem a ela quer aceder? Porque se mantém a licenciatura em Medicina blindada quando há um muitíssimos locais por esse Portugal inteiro onde não há médicos?
O País mudou muito nestes 40 anos e aquilo que se aplicava na década de 180 do séc. passado, com a redução de entrada nos cursos de medicina à sua mínima expressão, não é possível aplicar-se em 2019. Os hospitais privados têm uma dimensão e um peso que não tinham há 40 anos - são uma alternativa de formação e de realização profissional para quem busca a profissão médica, e ainda bem. É essencial que o SNS seja o esteio da excelência e da inovação em saúde. É essencial que os profissionais escolham trabalhar no SNS e, para isso, é preciso reformar as carreiras médicas, reforçar o investimento na inovação e, principalmente, introduzir uma cultura de avaliação, meritocracia e responsabilização, mas também de remunerações condignas e atractivas.
A centralização do sistema de saúde nos Cuidados de Saúde Primários, fazendo dos Centros de Saúde / Unidades de Saúde Familiares a sua porta de entrada, alocando especialistas e centros de diagnóstico dedicados é indispensável para o esvaziamento dos serviços de urgências, inundados de situações não urgentes. A implementação de programas de prevenção da saúde - literacia em saúde, promoção de estilos de vida saudáveis como a vida activa e a alimentação saudável, a alteração dos ritmos e dos horários de trabalho, flexibilizando-os e estimulando o teletrabalho, a delegação de competências a outros profissionais de saúde como enfermeiros e técnicos superiores, tanto, tanto que há a fazer.
E não posso deixar de falar de outra falência, de tão grave, como a que chegou aos títulos dos jornais, e que tem a ver com a incompreensível morosidade da apreciação de processos pelo Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos. Como é possível haver um médico com 5 processos a correr desde 2013, sem que se perceba o que aconteceu, porquê e porque não, num assunto desta gravidade? Como podem estar médicos sem competência certificada a fazer estes exames? Entre 2000 e 2009 não foi possível criar uma competência específica para a realização de ecografia obstétrica - 10 anos depois continua a ser impossível?
Como médica que sou fico imensamente chocada quando tomo conhecimento destes casos, pela gravidade que têm, pelos imensos problemas e dor que geram, pela desconfiança que, inevitavelment, suscitam.
A certificação da qualificação e da competência profissional para exercer medicina em Portugal é da alçada da Ordem dos Médicos, que avalia os currículos dos médicos que se formam em Portugal e no estrangeiro. Para estes últimos, é um calvário sem fim à vista, como tenho testemunhado, sem prazos definidos. Um processo que se inicia por um exame com 3 provas, depois um pedido de equivalência à especialidade, com a eventual necessidade de mais um exame. tudo muito lento, sem prestação de informações, com uma notória e imensa falta de respeito por quem se candidata, pela profissão e por quem poderia beneficiar de mais um especialista. Muitos desistem.
Sim, há muitos tipos de falências na nossa sociedade - a negligência e deresponsabilização são das mais nocivas na e para a nossa sociedade.
Uma das informações que eu gostaria de ter, das várias notícias que saíram hoje em relação à ocupação de vagas no SNS abertas em Maio deste ano, era o número de candidatos por especialidade.
Saber que apenas 14 de 31 vagas de ginecologia/ obstetrícia foram ocupadas é importante, mas mais importante, na avaliação da atractividade e capacidade de retenção de profissionais no SNS, é saber o número de recém-especialistas em condições de concorrer e quantos o fizeram.
Não deixa de ser interessante que a mesma ERS que, segundo os inspirados tremendos títulos dos submersos pelo permanente caos no SNS, condenou o HVFX por internar doentes em refeitórios e casas de banho, classifique o mesmo HVFX com a classificação máxima de 3 estrelas em várias componentes, nomeadamente na vertente Adequação e Conforto das Instalações.
É também interessantíssimo que os detractores da ignominiosa existência de PPP na saúde não tenham comentários a fazer sobre os resultados do SINAS na avaliação dos Hospitais.
A Ordem dos Médicos disponibiliza, online, estatísticas por especialidade - as mais recentes são de 2017.
Dessas estatísticas, realço apenas a especialidade de Ginecologia / Obstetrícia, a propósito das notícias diárias de caos, falta de especialistas, urgências e maternidades a fecharem, etc.
Convém não esquecer que os médicos especialistas podem deixar de fazer urgências nocturnas a partir dos 50 anos - na especialidade de Ginecologia / Obstetrícia há 74% de médicos com mais de 50 anos. Mas a partir dos 55 anos, podem também deixar de fazer urgências diurnas - nesta mesma especialidade 61% dos médicos têm mais de 55 anos e 32% têm mais de 65 anos (a idade da reforma é por volta dos 67 anos).
Ou seja, o problema das urgências em Ginecologia / Obstetrícia tem principalmente a ver com o envelhecimento dos médicos.
Por outro lado, e lendo o Relatório Social do Ministério da Saúde e do Serviço Nacional de Saúde (o último disponível é também de 2017):
Ou seja, ao contrário do que muitos comentadores e opinadores comentam em todos os media, o problema da falta de médicos nada tem a ver com a redução das 40 para as 35 horas semanais, pois os médicos mantêm as 40h/ semana.
E em relação ao facto de haver muitos médicos a serem seduzidos pelos Hospitais Privados, isso não é globalmente verdade e, no caso da especialidade de Ginecologia / Obstetrícia, não o é especificamente.
Resumindo - há falta de médicos sim, porque eles não existem e não se formam de um dia para o outro.
Nada do que se está a passar no SNS, em termos de escassez de recursos humanos, pelo menos médicos, é novidade e estava prevista e diagnosticada há décadas. Gostaria muito de ouvir alguém, nomeadamente jornalista, a informar sobre o seguinte:
Estes problemas não são de agora e chega a ser pornográfico ouvir agentes políticos e jornalistas repetirem aquilo que existe há décadas como se fosse novidade, ouvir repetir mentiras sobre as PPP, como se o SNS se resumisse a 4 hospitais em PPP.
É tudo demasiado triste e muito cansativo.
https://www.edulog.pt/artigos/em-analise/em-debate-ha-falta-de-medicos-em-portugal
https://www.spp.pt/UserFiles/file/Publicacoes/Estudo_Evolucao_Prospectiva_Medicos_Relatorio.pdf
Muito boa a entrevista de Marta Temido ao DN e à TSF. Ponderada e realista, com os problemas equacionados e as soluções analisadas.
Esperemos que possa por em prática o que preconiza. Em vez das proclamações de amor pelo SNS precisamos de políticas concretas e corajosas.
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