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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
30.
Empapamos de suor
Os lençóis da juventude
Com a fé e o ardor
Dos profetas da virtude
Entrelaçamos de dor
Os dias de vastidão
Enterramos o bolor
Que cresce na solidão
Aprendemos o caminho
Nas noites de agonia
Senhor mostra-me o carinho
Com que derretes o dia
Maria Sofia Magalhães
Prosas Bíblicas
Pág. 42
Philippe Jaroussky & Julia Lezhneva
Stabat Mater dolorosa - Pergolesi
11.
Vou plantando incertezas
Entre caminhos escuros
Arrancando asperezas
Construindo alguns muros
Solto os cães dentro de mim
Que guardam o vento leste
Mastigam num frenesim
A marca que me fizeste
O tempo já corroeu
A divina tatuagem
Senhor agora sou eu
A refazer a viagem
Maria Sofia Magalhães
Prosas Bíblicas
pág. 23
Cenas da vida de Cristo – Entrada em Jerusalém
14.
Falareis da rosa como se soubésseis de espinhos
Cuidareis dos filhos para que morram sozinhos
Carregareis as pedras com que fareis os caminhos
Servireis a fome que alimentais de carinhos
Mas a cova que vos espera será de lama
Mas o templo que vos tenta será de vento
Mas o tempo que vos gasta será a chama
Que do espaço vos devora sem um lamento
Maria Sofia Magalhães
Prosas Bíblicas – Livro 3
Pág. 74
Mosaico
Museu Glencairn
Nesta roda mal rodada
Que com penas nos depena
Pelo tempo depenada
Com suspiros mas sem pena
Hora agora que rezamos
Aos fiéis de pacotilha
As mãos postas que mostramos
Santa cruz na gargantilha
Não nos chegam os pregões
Nem os joelhos no chão
Amealham-se os sermões
p'ra futura redenção
Toca o sino e o badalo
Pasta o cordeiro de leite
Dorme o burro e canta o galo
Não há deus que se respeite
Cristo morto
Cristo vai morrendo serena
e diariamente sem remédio nem retorno
dos pecados que o mundo lhe oferece
na eternidade da paixão que ressuscita.
Entre pedras tumulares e gritos de espanto
Cristo morre e levita
sem sentido nem perdão
atraiçoado pela fé que em si e em nós
deposita.
Um dois três
quatro cinco seis
vamos ter festa
e não é de Reis.
Sete oito nove
dez onze doze
amêndoas não tenho
que ninguém as trouxe.
Treze catorze quinze
dezasseis dezassete dezoito
mas em vez delas
comprei um biscoito.
Dezanove vinte vinte e um
foge cabritinho
que já estás gordinho.
Vinte e dois vinte e três vinte e quatro
vamos embora
que está na hora.
Já se faz tarde
nesta vidinha
o que vai dar
não se adivinha.
Besunta a forma
espreme o limão
à nossa retoma
de escravidão.
Sopra no forno
limpa a colher
que não há retorno
vamo-nos benzer.
Cristo confina
confino também
a alma definha
e fica refém
do corpo dobrado
que não se sustém.
Recolhe a esmola
que sem vintém
ninguém se consola
e esta revolta
já não se detém.
Não tenho feito pão, nem bolos, nem compotas, nem licores, nem nada que se coma, para além do que já fazia antes do confinamento obrigatório – umas saladinhas, uns ovinhos cozidos, enfim, deixo a comida para o expert cá de casa.
Mas ontem resolvi recuperar um pouco da minha veia artística e inventiva e resolvi fazer uma mousse de chocolate, já várias vezes tentada e muitas sem grandes resultados.
Portanto comprei uma tablete de 200 g de chocolate negro com 70% de cacau, parti-o em pedaços para dentro de um tacho, juntei 150 g de açúcar, um bocado de leite do dia gordo (não medi, mas foram cerca de 100 a 150 ml) e, grande acrescento que aprendi por essa internet fora, uma colher de sopa de azeite. Sim, leram bem: uma colher de sopa de um bom azeite. Liguei o fogão baixinho, para o chocolate derreter e não queimar.
Entretanto tinha deixado 6 ovos fora do frigorífico para ficarem à temperatura ambiente – li algures que isso fazia tooooooooda a diferença. Separei as gemas das claras e mexi muito bem as gemas, com uma colher de pau, de forma a que se transformassem num creme amarelado e homogéneo.
Depois do chocolate ficar em papa com o açúcar, o leite e o azeite, tudo muito bem mexido, retirei do lume, deitei lá para dentro um bom golo de licor caseiro de poejo e, devagarinho e mexendo sempre com grande vigor (todas as minhas receitas necessitam e evidenciam enorme vigor), fui juntando o creme das gemas para se irem incorporando na papa de chocolate.
A seguir, sempre com o pensamento estratégico na finalização da dita mousse, que requer mais planeamento que o isolamento viral, bati as claras em castelo bem firme (o castelo, claro) com uma pitada de sal, outro dos grandes segredos mal guardados da culinária ancestral. Mal o castelo se manteve de cabeça para baixo sem sofrer a acção da gravidade, comecei a misturar levemente as claras com o preparado de chocolate, envolvendo-as delicadamente, desta vez sem qualquer vigor, para que a mousse ficasse leve.
Frigorífico com ela e hoje, após deglutir um cabrito que demorou séculos a assar, mas que estava delicioso (do qual não sei a receita porque não meti prego nem estopa na sua confecção), com esparregado e batatinhas novas com casca, foi devidamente apreciada por todos os que partilhamos a almoçarada.
Enfim, mesmo com as ameaças invisíveis que nos rodeiam tratámos de nos banquetear, celebrando a festa de estarmos juntos. E a festa somos sempre nós que a decidimos e escolhemos.
Vieiira da Silva
Do cabrito reza uma história que não sei contar. Talvez lá para as bandas do último dos Romanos se possa descortinar a receita. Sei apenas que ocupou uma prateleira do frigorífico durante vários dias, mergulhado numa molhanga encarniçada. O passeio diário de 180 graus era bastante custoso, pois os 2 garfos compridos, quais forquilhas do demo, eram parcos para tanta costela. Fiquei mesmo com a impressão que a metade tinha um multiplicador, como agora está na moda dizer-se a propósito da austeridade, mas este era de aumentação.
Mas que estava uma delícia, isso é um facto, com acompanhamento de castanhas e esparregado, regado com o costumeiro vinho que já se tornou tradição pascal, cá em casa.
Para não mencionar um maravilhoso pudim, também da autoria do cozinheiro de serviço, que era uma bomba calórica, mistura entre leite condensado, leite de coco, gelatina e frutos silvestres, mas que se derretia na boca e se deglutia quase sem se perceber.
Enfim, se os impostos sobre produtos nocivos já estivessem activos, nós hoje já tínhamos contribuído com uma bela percentagem para a redução do défice. Só faltou mesmo um certo canadiano de empréstimo para que o dia fosse perfeito...
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