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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Medicine Woman
Cansaço imenso de me sentir a afogar perante tanta histeria, tanto espectáculo de má qualidade.
Má qualidade das informações e dos informadores, repetição sistemática e ruidosa de lugares comuns, meias falsidades ou mesmo falsidades completas, numa gritaria demente que aterroriza as pessoas, adormece-lhes o sentido crítico e paralisa o raciocínio.
Má qualidade dos protagonistas que, a coberto de cargos institucionais, dão largas às suas agendas e ambições pessoais, cobertura a posturas pesporrentes e arrogantes de quem não entende que nada nem ninguém é indispensável, e que a utilização oportunista de desgraças colectivas é tristemente demonstrativa da falta dos valores que, hipocritamente, se apregoam.
Cansaço imenso de mim própria porque não aceito que mudei, que já não tenho o vigor e a audácia, quem sabe a coragem, da afirmação do que me indigna e revolta. Cansaço imenso da minha própria acomodação ao crescente incómodo. Cansaço imenso da minha cobardia.
Como médica que sou, não me revejo na omnipresença do Bastonário, nos avisos do Bastonário, nas palavras, ditas ou escritas do Bastonário, nas ameaças, veladas ou explícitas do Bastonário. Sindicalizado só está quem quer, mas à Ordem dos Médicos todos pertencemos. Não somos uma irmandade selecta nem um grupo de gente com dons divinos. Somos pessoas de carne e osso, com qualidades e defeitos, que escolhemos a profissão que temos. Fantástica e maravilhosa com os riscos e as responsabilidades inerentes, que conhecemos e aceitamos. Capaz de nos elevar à euforia ou à mais funda depressão, de nos tirar noites de sono, de nos dar dias de enlevo.
Como médica que sou agradeço a possibilidade de continuar a sê-lo, apesar de tudo. E principalmente apesar daqueles que têm como função representar a serenidade, a pedagogia, a empatia, o rigor científico, a tolerância, a exigência, a humildade.
É isso - cansaço imenso.
Temos ouvido repetidamente o Bastonário da Ordem dos Médicos dizer que os problemas das urgências pediátricas, obstétricas e outras são a demonstração da falência do Estado. E tem razão, pois é o Estado que tem a responsabilidade de desenvolver e implementar as políticas e as medidas que suportem uma cobertura de serviços de saúde, eficaz e suficiente, em todas as especialidades.
Mas talvez fosse mais importante perceber o porquê dessas insuficiências, e são diferentes das que temos visto brandir pelo mesmo Bastonário. Como já aqui realcei, a população médica está envelhecida, sendo de 50 anos a idade média dos especialistas que trabalham no SNS (50,8% têm mais de 50 anos). Significa isto que metade dos médicos especialistas podem ser dispensados de fazer urgências nocturnas e, dessa metade, cerca de 3/4 têm mais de 55 anos, o que os dispensa também de fazer urgências diurnas.
A consequência deste envelhecimento dos quadros é a necessidade que há de assegurar as equipas de urgência com a metade dos especialistas mais jovem, que se vê obrigada a aumentar exponencialmente as horas alocadas aos serviços de urgência - 2 e 3 ou mesmo mais dias (e noites) por semana, o que se torna insustentável. Qualquer médico, por muito dedicado à causa pública que seja, procura uma alternativa de forma a poder ter uma vida minimamente normal.
E o problema vai agravar-se, se observarmos com atenção os gráficos disponíveis na página 189 do Relatório Social do Ministério da Saúde e do SNS de 2018. Além disso, e ao contrário do que se diz para justificar a saída dos médicos do SNS - esta é expressiva predominantemente nos médicos mais velhos, que já não fazem urgências - a taxa de retenção global no SNS dos especialistas formados em 2018 foi de 83% (80% para a Pediatria, 84% para Ginecologia/Obstetrícia), desmentindo a narrativa da hemorragia dos jovens médicos para o sistema privado (págs. 2019 e 210).
Portanto não há médicos a mais, como a Ordem dos Médicos ao longo de décadas tem defendido (anteriores Bastonários e o actual). Há poucos, envelhecidos, mal distribuídos e mal aproveitados. A reorganização dos serviços de urgência, de que se fala há décadas, é absolutamente indispensável, com a concentração das urgências, de todo o tipo, apenas em 1 ou 2 hospitais da Grande Lisboa (para falar na Captital), de forma a optimizar os escassos recursos.
Há falência, sim, mas de organização, adaptação aos novos tempos, tal como houve de visão de médio e longo prazo. Porque se mantém fechada a hipótese de abertura de outros cursos de Medicina, abrindo a profissão a quem a ela quer aceder? Porque se mantém a licenciatura em Medicina blindada quando há um muitíssimos locais por esse Portugal inteiro onde não há médicos?
O País mudou muito nestes 40 anos e aquilo que se aplicava na década de 180 do séc. passado, com a redução de entrada nos cursos de medicina à sua mínima expressão, não é possível aplicar-se em 2019. Os hospitais privados têm uma dimensão e um peso que não tinham há 40 anos - são uma alternativa de formação e de realização profissional para quem busca a profissão médica, e ainda bem. É essencial que o SNS seja o esteio da excelência e da inovação em saúde. É essencial que os profissionais escolham trabalhar no SNS e, para isso, é preciso reformar as carreiras médicas, reforçar o investimento na inovação e, principalmente, introduzir uma cultura de avaliação, meritocracia e responsabilização, mas também de remunerações condignas e atractivas.
A centralização do sistema de saúde nos Cuidados de Saúde Primários, fazendo dos Centros de Saúde / Unidades de Saúde Familiares a sua porta de entrada, alocando especialistas e centros de diagnóstico dedicados é indispensável para o esvaziamento dos serviços de urgências, inundados de situações não urgentes. A implementação de programas de prevenção da saúde - literacia em saúde, promoção de estilos de vida saudáveis como a vida activa e a alimentação saudável, a alteração dos ritmos e dos horários de trabalho, flexibilizando-os e estimulando o teletrabalho, a delegação de competências a outros profissionais de saúde como enfermeiros e técnicos superiores, tanto, tanto que há a fazer.
E não posso deixar de falar de outra falência, de tão grave, como a que chegou aos títulos dos jornais, e que tem a ver com a incompreensível morosidade da apreciação de processos pelo Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos. Como é possível haver um médico com 5 processos a correr desde 2013, sem que se perceba o que aconteceu, porquê e porque não, num assunto desta gravidade? Como podem estar médicos sem competência certificada a fazer estes exames? Entre 2000 e 2009 não foi possível criar uma competência específica para a realização de ecografia obstétrica - 10 anos depois continua a ser impossível?
Como médica que sou fico imensamente chocada quando tomo conhecimento destes casos, pela gravidade que têm, pelos imensos problemas e dor que geram, pela desconfiança que, inevitavelment, suscitam.
A certificação da qualificação e da competência profissional para exercer medicina em Portugal é da alçada da Ordem dos Médicos, que avalia os currículos dos médicos que se formam em Portugal e no estrangeiro. Para estes últimos, é um calvário sem fim à vista, como tenho testemunhado, sem prazos definidos. Um processo que se inicia por um exame com 3 provas, depois um pedido de equivalência à especialidade, com a eventual necessidade de mais um exame. tudo muito lento, sem prestação de informações, com uma notória e imensa falta de respeito por quem se candidata, pela profissão e por quem poderia beneficiar de mais um especialista. Muitos desistem.
Sim, há muitos tipos de falências na nossa sociedade - a negligência e deresponsabilização são das mais nocivas na e para a nossa sociedade.
Após a análise do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas (CNEDM), em relação ao parecer emitido pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) sobre o racionamento de medicamentos, multiplicam-se as demissões mas, espantosamente (ou não), a do Bastonário não é uma delas.
Penso que estas declarações do Bastonário reflectem bem a forma como o representante da Ordem dos Médicos lida com as opiniões que divergem da sua. O modo como reagiu publicamente ao parecer do Conselho Nacional de Ética e Ciências da Vida sobre racionamento de medicamentos, ameaçando os médicos com processos disciplinares, e a irrelevância com que desconsidera o documento do Conselho Nacional de Ética e Deontologia Médicas, que não divulgou, são demonstrativos de falta de honestidade intelectual e autoritarismo.
O debate e as trocas de informações são essenciais para o esclarecimento e para a tomada de decisões políticas, mais ainda em assuntos extremamente delicados como estes. O Bastonário e a Ordem dos Médicos deveriam ser referências de ponderação e não exemplos de atitudes pouco éticas.
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