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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Muitas vezes me questiono sobre os valores morais, a decência, a mudança dos mesmos e das suas definições ao longo dos séculos, o que é aceitável em 1500, 1900, 1940 ou 2024, de como, no século XXI, tantos comportamentos assustadores e inimagináveis começam a reaparecer. Como foram possíveis, no último século, e como estão eles a renascer?
A relatividade com que, hoje, se fala dos direitos, liberdades e garantias, a falta de sobressalto quando se ouvem líderes políticos defenderem atitudes, comportamentos, leis, que há uns anos nos pareceriam dignos de gente louca, terrorista ou criminosa, mostra bem que somos os mesmos, a mesma massa humana, e que tantos séculos de evolução pouco mudaram a nossa mente.
Mas na verdade, as pulsões da intolerância, da xenofobia e do racismo mantêm-se, por vezes mais abertas por vezes mais escondidas. O que permitiu às sociedades ocidentais fenómenos ditatoriais e de escravização das minorias, dos diferentes, a forma como rapidamente o anti-semitismo cresce e se espalha, como gente comum se torna em gente mesquinha, medrosa, criminosa (a tal banalidade do mal), é aquilo a que vamos assistindo, ciclicamente, ao longo da História.
Porque os sentimentos humanos, a generosidade e a solidariedade, o respeito pelo outro, a empatia e a compaixão, a certeza de que há atitudes, pensamentos e valores que são certos e que devem ser defendidos a todo o custo, mostram-nos que somos amálgamas imperfeitas mas que há sempre aqueles que são justos, mesmo com risco da própria vida.
O livro Village of Secrets - Defying the Nazis in Vichy France, é a história de muitos heróis simples e discretos, gente que, mesmo com as dificuldades da ocupação, com a fome e o roubo a que permanentemente estavam sujeitos pelos ocupantes alemães, aqueles que se negaram a colaborar com a regime de Vichy, numa comuna francesa junto à fronteira com a Suíça (Le Chambon-sur-Lignon), fizeram das suas casa, quintas, hotéis, cafés, escolas, caves, dos seus amigos, conhecidos, familiares, um exército civil de resistência, de esconderijos e refúgio para judeus, criação de identidades falsas e arquivos de nomes verdadeiros de crianças, juntamente com impressões digitais, para que, na esperança de um fim mais feliz, fosse possível aos milhares de martirizados que ajudavam, recuperarem o mínimo da sua identidade familiar e cultural.
Não nos enganemos. Podemos ser os libertadores e os algozes. Aquilo a que vamos assistindo pelo mundo, à destruição da decência, a criação de verdades e de factos alternativos, o desatar dos nossos mais baixos instintos, auguram o regresso da escuridão. Felizmente há sempre alguma luz. Que não a percamos de vista.
A minha amiga Ana Marques Pereira é uma mulher extraordinária.
Não só como clínica, rigorosa, competente, empática, informada (tratam-se doentes, não doenças), com quem tive o privilégio e o prazer de trabalhar durante alguns anos, mas também como pessoa interessada na vida, na História, nos livros, nos manuscritos, na arquitectura, nos objectos, nos ingredientes, na indústria, enfim, em tudo o que se relacione com cozinhas, gastronomia e alimentação humana ao longo da História.
Interessada e interessante, consegue verter os seus conhecimentos para vários livros e conferências, cursos e palestras, com a animação de quem está a contar uma história policial, com a erudição e a simplicidade de quem sabe, de facto, muito.
Também com ela partilho o gosto pelos policiais e pelos heróis de Agatha Christie. Talvez esse gosto tenha sido uma das razões pela escolha da Medicina como profissão - a procura do diagnóstico através das várias pistas que são os sinais e os sintomas, o relacionar tudo isso, o conhecer o corpo e também a personalidade do doente que nos conta, saber escutar e fazer as perguntas certas.
Pois a Ana Marques Pereira lançou ontem mais um livro interessantíssimo - Cadernos de Dominguizo. É um livro que relata a forma como descobriu imensas coisas sobre uma abastada família da Beira Baixa (séc. XIX) através de 2 cadernos de receitas manuscritos, que tinha comprado há já bastante tempo.
Uma verdadeira história policial, cheia de pistas que se vão estudando e esgotando, cheia de conhecimento, referências, citações e explicações, bem contada, num livro lindo e muito bem feito.
Parabéns a ela e a quem com ela trabalhou para que o livro se transformasse numa realidade. E a Alexandra Prado Coelho que tão bem o comentou.
E não se esqueçam! Se também escreverem à mão as vossas receitas culinárias, não se esqueçam de as compilar, dar-lhes um título, assinarem e datarem!
Aqui está uma bela surpresa de Natal.
Duas famílias que vivem lado a lado e que uma tragédia separa. No entanto, alguma coisa de muito forte as mantém unidas, ao longo dos anos em que não se vêem.
Uma história atravessada por uma imensa tristeza e melancolia, mas ao mesmo tempo de esperança, em que se celebra o amor como a cola dos cacos em que nos vamos transformando.
Gostei muito.
Javier Cercas continua a escrever sobre a Guerra Civil Espanhola. Mesmo não querendo.
Porque faz parte dele e parte da família dele. Porque faz parte de cada um dos descendentes de cada um dos mortos e de cada um dos sobreviventes da Guerra Civil.
Porque há o medo de descobrir e de encarar o horror de perceber que há pessoas dos dois lados da Guerra, pessoas com sonhos e com paixão e com idealismo. Porque há a necessidade de expurgar os fantasmas. Porque somos feitos de todos os bocados do que nos une e nos desune, do que nos enobrece e do que nos envergonha.
Porque a busca de um antepassado a que queremos colar uma figura de carne e osso, fazê-la emergir do passado, do esquecimento, da lenda, do mito, se impõe.
É uma viagem por dentro de Ibahernando, da Tierra Alta, da Batalha do Ebro, da sua família, de si próprio, em busca de Manuel Mena, seu tio-avô, que morreu pelos franquistas, integrado nos Tiradores de Ifni.
Javier Cercas é magistral na procura de um passado que teme, mas que o arrasta e engole. De um passado que o ensine a aceitar o presente e as contradições que se entrelaçam na nossa memória colectiva, na nossa condição humana.
Não tentes reconciliar-me com a morte, ó glorioso Ulisses.
Eu preferiria estar na terra, como servo de outro,
Até de homem sem terra e sem grande sustento,
Do que reinar aqui sobre todos os mortos.*
*Odisseia, Homero, Livros Cotovia, 7ª edição, Outubro de 2006, tradução de Frederico Lourenço
Atul Gawande
Somos mortais embora cada vez nos lembremos menos disso. E deixamos cada vez mais de aceitar essa inevitabilidade.
Para a nossa sociedade e principalmente para nós, médicos, que encaramos a profissão como a obrigação de vencer a morte e, quando já não é possível, de a adiar, o envelhecimento não é mais que uma soma de disfunções das várias partes do corpo que são encaradas cada uma por si e não como um todo, em vez do normal e inevitável processo de nos irmos aproximando do fim.
Por isso, à medida que os nossos familiares, amigos ou nós mesmos, começam a ter dificuldades na mobilidade, a lentificar as reacções, a perder a memória, a cair, quando os nossos órgãos e sistemas se começam a desligar, a gastar todos os backups existentes, não aceitamos essa realidade e, em nome da segurança e da necessidade de viver, sempre mais e mais, utilizamos os conhecimentos técnicos para fazer mais qualquer coisa sem cuidar que é disso mesmo que precisamos, que é isso mesmo que queremos.
Em nome da vida tornamos a vida daqueles de quem cuidamos, pessoal e/ ou profissionalmente, num somatório de entradas e saídas do hospital, infantilizamos as suas vidas e proibimos-lhes aquilo que mais define o ser humano - a sua liberdade, a tomada de decisão, a privacidade.
Lares e casas de repouso que tudo proíbem, que homogeneízam as refeições, as horas de levantar e deitar, os quartos, as mobílias, as companhias, intervenções médicas e cirúrgicas que muitas vezes são a forma de apaziguarmos o medo e a incapacidade de encarar o inevitável e de o preparar, esticando a possibilidade de estender a existência com o objectivo desta ser o que queremos, mesmo com limitações, mas sem nos transformarmos num fardo para nós e para os outros.
Atul Gawande escreveu Ser Mortal com a ternura e a coragem de quem quer ser mais do que um médico que informa, mas transformar-se num médico que ajuda. Talvez tenhamos que aprender a olhar o fim da vida de outra maneira, a escutarmos e a deixarmos falar quem queremos tratar. A felicidade tem muitos matizes e é diferente para cada um de nós. A sensação de utilidade, de um compromisso com os outros, de amar e ser amado, de poder manter a individualidade, a privacidade e a capacidade de decidir, deveria ser o próximo passo na humanização dos cuidados de saúde.
Um livro indispensável.
O livro de Fernando Aramburu é avassalador. Muitíssimo bem escrito, narra a vida de duas famílias, e com elas a vida dos bascos, durante a luta pela independência. De um lado os defensores da luta armada do outro as vítimas dessa luta.
O terrível rasgar das relações de amizade, de convívio, de respeito, a separação entre os que dão a vida pela causa e os que são assassinados pela utopia, a pobreza, as complicadas relações humanas atravessadas pela pobreza, pelas diferenças de classes que são como um rio lamacento que vai inundando as consciências.
Uma mãe que fala com Santo Inácio de Loyola, uma esposa que fala com a túmulo do marido, tudo de pedra, tudo frio, a fé que se desmonta e soçobra, o medo, a superação, a resistência e a perda de todas as ilusões.
Um livro tão bom como duro, que remexe nas feridas para as curar.
É raro que a adaptação cinematográfica faça justiça à literatura. Não é este o caso. A série da HBO é fiel ao relato de Fernando Aramburu e dá tons à rigidez da realidade, à crueza das feições torturadas, dos sentimentos afundados, das lágrimas bem fechadas.
Não percam nem um nem outro. À sua maneira é uma história de Natal.
O isolamento, o envelhecimento, a constante procura do porquê de se ser, de se estar, a consciência de existir.
A repetição dos dias, dos pensamentos, das forças, do medir de forças, das memórias, dos desejos, dos momentos de alegria, do conforto da solidão, do vento como companhia, como companheiro, como adversário, como amigo.
O amor e a morte, a morte e o amor, mas não a morte do amor que fica, que sobra, que se instala e se repete.
Tudo se repete, dia a dia, hora a hora, noite a noite, madrugada a madrugada.
O deambular sem organização ou a organização do caos, o pensamento que discorre, que se interroga, que afirma, que se lembra, que sofre, que ama.
A arte das palavras e da imagem, sentir a chuva, a neve, as rochas, as pedras, as flores, a cor, o olhar, a curva dos lábios, a macieza das mãos e dos gestos, a ilha, o longe e a clandestina vida que se vai completando, sempre no caminho contra o vento.
Cristina Carvalho escreve um romance biográfico sobre Ingmar Bergman a partir dos últimos anos da sua vida em Fårö. Personificando Bergman, vestindo-o e mergulhando no seu espírito, Cristina Carvalho mostra-nos a faceta do homem e não a imagem do artista, o homem como a essência do ser artista e não a arte como profissão. Ficamos a conhecer Ingmar Bergman por dentro. Um artista visto por dentro, o homem que se não nega a que o sintam como alguém que se angustia, que tem medo, que se irrita, que persiste, que persiste na busca de si mesmo.
É um livro extraordinário.
Ler é um dos grandes prazeres que tenho na vida. Quando estou de férias redescubro o que é devorar livros, passando os dias reclinada num cadeirão ou estendida na cama a ler.
Para isso também é preciso que haja livros que me prendam, o que é cada vez mais difícil. Ou porque eu própria estou já cansada dos temas, ou porque as personagens não me convencem, ou porque simplesmente não me cativam.
Tinha muita curiosidade de ler este livro de Cristina Carvalho - A Saga de Selma Lagerlöf, uma escritora sueca, vencedora do prémio Nobel e a primeira mulher a ser eleita para a Academia Sueca, autora de (entre outros) A Maravilhosa Viagem de Nils Holgersson através da Suécia. Mas estava longe de imaginar o quanto gostei do livro.
Cristina Carvalho dá voz a Selma Lagerlöf e conta-nos, de uma forma simples e imaginativa, a sua fantástica vida, o seu amor pela terra e casa de família, as histórias que ouvia contar, as lendas, os bruxos, as videntes, a Natureza, toda ela diversa e omnipresente, os bichos, o lago, as florestas, as aves, o seu defeito físico, as suas relações com outros escritores e com as suas amantes, o seu combate pelas causas feministas, etc. Parece ter sido um livro escrito de rompante, quase como se Selma Lagerlöf tivesse suspendido a morte e escolhesse Cristina Carvalho como depositária das suas memórias.
Gostei imenso.
Estoril
Dejan Tiago-Stankovic escreveu um livro sobre Lisboa na II Guerra Mundial, uma Lisboa centrada no Hotel Palácio, onde inúmeros refugiados da nata europeia, fugidos da Guerra e das perseguições aos Judeus, aí aguardavam viagem para outro local, ou o fim das hostilidades.
Baseado em factos reais, é uma narrativa fluida e muito interessante, por vezes comovente, dos laços que se estreitam entre as mais diversas pessoas nas mais estranhas circunstâncias. O labiríntico marulhar da espionagem é também central no desenrolar dos acontecimentos.
Um livro surpreendente, que mistura Saint-Exupéry com Ian Fleming, jogadores de xadrez e espiões sérvios. Vale a pena ler e ouvir outras opiniões.
Cada vez gosto mais de ler biografias, principalmente biografias de escritores.
Acho interessantíssimo conhecer a pessoa para além da capacidade de escrita, a forma como viveu, as suas circunstâncias e as do mundo que a rodeava, a família, o processo de criação, a sua ideologia política, se a tinha, a sua intervenção de cidadania, se é que a teve, as suas vitórias e derrotas, a maneira como lidava com a fama ou com o anonimato, enfim, a sua vivência e a sua humanidade.
Li a biografia de Agustina Bessa-Luís logo que foi publicada, até pelo fascínio que sempre me provocou. E não fiquei desiludida. Isabel Rio Novo consegue dar-nos a conhecer a mulher, a escritora, a irreverência e o conservantismo, a feminilidade, a alegria, o humor, a incrível capacidade de se distanciar de tudo e de olhar a sua vida como o adubo das suas personagens e dos seus aforismos.
Pelo contrário, a biografia de Sophia de Mello Breyner não me prendeu nem me devolveu uma pessoa. Penso que Isabel Nery ficou demasiado impregnada da imagem da poetisa e da poesia de Sophia, que se intimidou. Não fiquei a perceber como era a mulher, para além dos padrões e dos valores morais, da imensidão da vivência da obra poética, do amor à Grécia. A sua intervenção política, pelo contrário, parece-me bem espelhada.
E se calhar nada disto é importante e o meu gosto por conhecer a pessoa atrás da figura, da intelectual, da escritora, da poeta, é apenas a minha futilidade e curiosidade de voyeur. O que nos interessa, de facto, é a obra que deixaram, é a extraordinária capacidade de nos envolverem, ensinarem, divertirem e emocionarem.
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