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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Temos já, tal como se previa, todos os ingredientes para a tomada do poder pela extrema-direita.
Temos como bodes expiatórios os imigrantes; temos o controlo da maior parte dos media pela direita e extrema-direita; temos uma manipulação doentia da informação, dando palco diariamente aos apóstolos das teorias fascistas e fascizantes, nomeadamente à "percepção" da violência e à insegurança, associando-as precisamente à imigração; temos a intimidação e a violência sobre os criadores, arrasando com a liberdade de interpretação, de criação, anunciando nova e mais cruentas violências (a minha solidariedade para com os actores da companhia "A Barraca").
Temos os partidos de extrema-direita a chegar ao poder e o desaparecimento sistemático dos partidos e movimentos que combatem o racismo, a xenofobia, a intolerância aos outros, aos diferentes, às minorias, retirando-lhes a dignidade e a possibilidade de viverem a sua vida sem que ninguém interfira.
Temos uma ignorância que se espalha à velocidade da luz, os antivacinas, os anti-investigação, os antiverdade, tal como o orgulho nessa ignorância. Temos a mentira, o escarninho, a cobardia, o ódio acicatado pelos odiosos e ignorantes, reduzindo a linguagem e o discurso a poucos e distorcidos vocábulos, do qual a vergonha desapareceu. Vergonha pelo que, na nossa sociedade, se considera um viver digno, como a paz, a solidariedade, a democracia, o compromisso com os outros, a liberdade.
Precisamente no dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, após um excelente discurso de uma criadora (completo aqui). Precisamente quando deveríamos sentir e aplaudir a maravilha de sermos uma mistura de tantos outros. Só isso dá riqueza à nossa evolução. Precisamente quando a homenagem e a condecoração de Ramalho Eanes nos comove e nos lembra o que é a cidadania, o serviço público, o compromisso com os outros.
«DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA
1.
Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.
Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.
Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.
Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.
É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações, e de fazer reflectir a sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.
Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre Beethoven – Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.
2.
Nunca mais morreu.
Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos. Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.
Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.”
Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.
Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.
3.
Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.
Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.
É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.
No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/ E mil vezes tiranos torna os Reis…
4.
Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear – É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.
Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.
Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.
5.
Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.
Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/ E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ Era o verdadeiro.
Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal, que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.
É verdade que a deslocação colectiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações actuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.
6.
Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia, e como foram repartidos e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica. Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.
Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.
7.
É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das paredes de um dos museus de Lagos está escrito o testemunho de um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”.
O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente, de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone datado de 2014 que tem corrido mundo – A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.
8.
Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.
A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?
9.
Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.
Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de “Os Lusíadas”, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/ Que não se arme e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da Terra tão pequeno?”
Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido, a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX, o direito à protecção beneficiada pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.
O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?
Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?
Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura, e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.
Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.
Muito obrigada.
Lagos, 10 de Junho, 2025.
Lídia Jorge»
Só falta o queimar dos livros. E o que se lhe seguirá.
Vincent Van Gogh
À medida que os anos passam, os deserdados da democracia vão perdendo vergonha e ganhando terreno.
A decisão do governo relativamente às comemorações dos 51 anos do 25 de Abril de 1974 e aos 50 anos das eleições para a Assembleia Constituinte deveriam ser uma prioridade de toas as Instituições Democráticas, não só pela celebração da alegria da libertação e pelo reconhecimento do tanto que o País se desenvolveu, como também pela alegria e necessidade de transmitir a quem nasceu já depois dessas datas, aquilo que de mais importante, precioso e delicado existe: a democracia, a liberdade, a igualdade e a solidariedade.
Todos estes conceitos são cada vez mais desprezados, se não denegridos pelas crescentes forças autoritárias, ignorantes e ditatoriais, de ditadores e/ou dos seus aprendizes.
É muito importante e urgente que não deixemos que o medo, o desinteresse, a amargura e a desilusão se instalem.
Desçamos a Avenida celebrando a Liberdade, com cravos, com turbantes, com mantos, com o que quisermos, de preferência bem vermelho.
Viva a Liberdade!
E difícil acreditar que algum dia os Estados Unidos da América se transformariam numa ditadura.
É muito difícil aceitar que um dos mais importantes e significativos baluartes da Liberdade resvala para uma sociedade fechada, sem liberdade de imprensa, sem separação de poderes, sem garantias de igualdade ou justiça para os seus cidadãos, sem qualquer pejo em usar a força para deter e violentar pessoas que tenham a ousadia de mostrar opiniões diferentes, que proíbe livros, palavras, conceitos, que transforma a ciência em ideologia, que dizima o Departamento da Educação, que ameaça países de compra e/ou invasão, sem qualquer respeito pelo direito internacional, pelo direito dos povos à autodeterminação, que rasga a Constituição dos EUA.
Putin invadiu a Ucrânia. Irá Trump invadir a Gronelândia, anexar o Canadá?
Que ninguém diga que não sabia. Trump e os seus apaniguados foram suficientemente claros. O projecto 2025 está a ser rapidamente implementado.
É muito difícil assumir a realidade, os EUA a fazerem-nos regressar aos anos 30 do século XX. Mas assim é.
As nuvens adensam-se. Estaremos ainda a tempo de evitar maiores e piores males?
O que se tem passado com a política externa do EUA desde que Trump assumiu a Presidência, é uma veloz e irreversível cavalgada para o retrocesso civilizacional, para o voltar de um ciclo de impérios ditatoriais.
Compram-se e vendem-se países, humilham-se os seu representante eleitos democraticamente, cortam-se alianças e refazem-se algumas antigas, cujo resultado foi catastrófico.
Estamos de joelhos, real ou metaforicamente.
É difícil ser optimista quando a se concretiza.
Embuste
É assim que se faz:
20 de janeiro de 2025
Ciclicamente, tudo o que entendemos ser a base comum do comportamento humano em sociedade, a matriz judaico cristã, em que os valores da solidariedade, da igualdade, o reconhecimento de direitos que fazem de nós seres humanos, transforma-se e desaparece, levando a situações de autoritarismo, de homogeneização num modelo idêntico, como se fossemos máquinas, a uma desigualdade e revolta que nos conduzem, inevitavelmente, ao papel de vítimas e algozes, de oprimidos e opressores.
A ignorância, a frustração, o racismo, o preconceito, o desprezo e desvalorização dos factos que transformam vacinas em opiniões políticas, o laxismo e a pobreza da linguagem, a violência, o deslaçar dos agentes culturais e dos que, quando nada mais há, nos asseguram a sobrevivência, a desqualificação de cada ser humano como único e irrepetível, como criador e executor do que imagina, como um dos pólos da infinita rede que se forma, sempre que se quebra a solidão.
Imigrantes ilegais, que tiveram o azar de nascer na miséria ou se transformaram em penas e pedras perdidas no mundo, gente com força suficiente para arriscar a própria vida, que tenta construir alguma felicidade e aconchego fora do seu país, que tenta conseguir alguma coisa que a transporte para condições mais dignas, mais fáceis, mais macias, têm peste.
Nestes tempos sombrios, os imigrantes são, por definição, criminosos, pelo que se transportam em aviões militares, algemados de pés e mãos. E o mundo que está a ruir vai ruir ainda mais. Não é só Trump, nos EUA, mas todos os governantes de extrema-direita dos países europeus, que deixaram de se envergonhar por dizerem os inimagináveis e perigosos absurdos que papagueiam, com poses de Estado e voz grossa.
Não faltarão ideias velhas, tristes, que querem reduzir a pó quem se lhes opõe: esvaziar Gaza de Palestinianos.
Sim, ele irá fazer o que prometeu. Ele e todos os outros que o têm como professor.
Temos ainda a certeza de que as tecnologias de informação, a nova comunicação, a inteligência artificial, manterão as realidades paralelas que servirem os seus interesses e desígnios. A transformação da inovação num instrumento do mais autoritário e aflitivo que existe – a perda da identidade como indivíduo, a perda da igualdade, da liberdade e a implosão das democracias.
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar [...]
Cantata de Paz
Sophia de Mello Breyner
Um dos Homens a quem devemos a Democracia e a Liberdade. E que nunca desistiu.
Adenda: Mário Soares não terá sido o autor desta frase e deste lema de vida, mas fê-lo seu. Salgado Zenha, seu grande amigo durante tantos anos, e outro grande lutador pela liberdade (em quem votei nas eleições presidenciais), repetia esta, como outras frases slogans de vida., que sempre seguiu.
Manifestação do PS na Fonte Luminosa, na Alameda, em Lisboa (30-12-1975)
No dia 25 de Novembro de 1975 defrontaram-se duas concepções de sociedade - os defensores de um regime democrático multipartidário de tipo ocidental e os de um regime totalitário ditatorial de tipo comunista. Foi uma data fundamental para a consolidação da democracia portuguesa, tal como o 25 de Abril de 1974 foi a data fundacional desse mesmo regime. Ambas foram fracturantes e em ambas poderia ter eclodido uma guerra civil.
Aos militares que organizaram e concretizaram o golpe militar a 25 de Abril e aos que defenderam o regime democrático a 25 de Novembro, devemos o nosso reconhecimento e as nossas homenagens.
O PS foi o partido político mais importante no combate à deriva extremista e totalitária de 1975. Essa memória faz parte da sua e da nossa História recente. Durante muitos anos foi precisamente esse momento um dos grandes entraves ao entendimento entre o PS e os partidos que, no 25 de Novembro, representavam a facção antidemocrática. António Costa conseguiu ultrapassar ressentimentos e posicionamentos monolíticos, fazendo uma ponte indispensável entre o que unia o PS e os partidos à sua esquerda, seguindo a abertura do PCP, que a percebeu como a única forma de desapear a direita do poder.
Mas o PCP e o BE terão que perceber que o caminho reiniciado a 25 de Novembro foi aquele que permitiu que eles próprios sobrevivessem, para não falar da democracia e da liberdade. A existência da Geringonça não pode levar o PS a negar a sua história nem a sua identidade intrinsecamente democrática, para não ferir as sensibilidades dos seus parceiros.
Ao permitir que a direita e a extrema direita se mostrem como os únicos defensores do 25 de Novembro, reclamando-o como uma das suas vitórias, o PS acaba por se deixar colar aos que, nessa altura, estavam do lado do totalitarismo esquerdista, esquecendo que foi uma trave mestra da liberdade naqueles tempos revolucionários. Eu não o esqueço e penaliza-me muito que, no Parlamento, seja apenas a direita a querer homenagear o 25 de Novembro.
Adenda:
Grupo parlamentar do CDS/PP - Voto de saudação n.º 41/XIV – Pelo 44.º Aniversário do 25 de Novembro
Grupo parlamentar do PS - Voto de saudação n.º 53/XIV - À construção da Democracia em Portugal
Não celebrar o 25 de Novembro? “Mário Soares nunca tal permitiria”, garante Ana Gomes
Ramalho Eanes: “Não percebo que estigmatizem o 25 de novembro”
Esperança
O que se está a passar nos EUA, em relação à próxima eleição presidencial, é não só espantoso como assustador.
Na realidade, como já vários media fizeram ver, a forma como se avalia as campanhas não é a mesma, nem é justa, nem equilibrada. O que se exige de Kamala Harris e de Tim Walz é completamente diferente do que se exige a Trump e Vance. Na verdade, tudo o que Kamala Harris diz é escrutinado e dissecado, havendo sempre quem diz que não responde, que não tem ideias, etc. Trump pode dizer o que lhe apetece, as coisas mais boçais, sem vergonha e demonstrativas da sua falta de carácter e da sua mente distorcida e ditatorial, ignorante e demente, que ninguém lhe exige respostas.
Uma enorme quantidade de anteriores colaboradores de Trump já vieram dizer que será um perigo para os EUA e, acrescento eu, para a Europa e para o mundo, um novo mandato presidencial de Trump.
Será que ninguém acredita no que dizem? Será que ninguém acredita no que ele próprio diz?
Finalmente, os donos dos jornais proíbem-nos de tomar partido por Kamala Harris. E Trump ainda não ganhou!
Mas que mundo este que estamos a preparar.
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