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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
A propósito do livro Village of Secrets que aqui referi, vi anteontem um filme - Au Revoir Les Enfants, de Louis Malle, que apenas conhecia de nome. É um filme de 1987 que recebeu, em 1988, 7 prémios César: melhor filme, melhor realização, melhor cenário original ou adaptado, melhor fotografia, melhor decoração, melhor som e melhor montagem.
O filme é baseado numa história verídica vivida pelo próprio Louis Malle. De uma simplicidade espantosa, sóbrio, silencioso, comovente, mostra mais um exemplo de como as comunidades religiosas, desta vez uma cristã, contribuíram para esconder e salvar crianças e adultos judeus, na França ocupada e colaboracionista.
O mais interessante do filme é o facto de não haver bons nem maus. Todos os personagens têm cambiantes e, por isso mesmo, faz-nos pensar na nossa própria ética, nos nossos próprios valores e de como estes podem ser postos à prova e serem, por nós, esquecidos.
Todos somos humanos, mas há heróis de todos os dias, que não precisam de caixas de ressonância nem de espelhos de aumentar. Porque são, eles mesmos, uma versão melhorada das nossas inquietudes e preocupações.
Num dia de trabalho intenso, como todos, em que as actividades domésticas na minha ausência também foram exuberantes, um jantarzinho a dois, numa bela cervejaria, seguida de uma noite de cinema.
A felicidade das pequenas coisas.
À la Clair Fontaine
Schubert
Ao longo da estrada
ouço a mistura dos sons e dos sentimentos
as luzes meio apagadas da manhã o nevoeiro
os cinzas e os riscos de vermelho que me acordam a alma
bato as palmas no ritmo do volante e
as cordas da guitarra arrepiam-me os dedos.
Tão tristes sinceros duros
os acordes desta estrada.
... e o espectáculo começa às 9 e três quartos...
(embora não tenha visto A Favorita)
Discreto, sóbrio, profundamente humano e contido, The Children Act é um excelente filme.
Down by the Salley Gardens
my love and I did meet;
She passed the salley gardens
with little snow-white feet.
She bid me take love easy,
as the leaves grow on the tree;
But I, being young and foolish,
with her would not agree.
In a field by the river
my love and I did stand,
And on my leaning shoulder
she laid her snow-white hand.
She bid me take life easy,
as the grass grows on the weirs;
But I was young and foolish,
and now am full of tears.
O mais impressionante, neste filme, é que é quase hiper realista. Muitos dos episódios, se não todos, mesmo que compactados e em épocas distintas, são verdadeiros. É uma comédia negra que, a partir de situações cruéis, vividas por seres humanos capazes de todos os horrores e sujeitos a tudo o que de grotesco acontece a todos, as mostra nas suas facetas ridículas e absurdas.
A maldade, a perfídia, a estupidez, a ambição, o medo, a cobardia, tudo está lá, enrolado numa comédia negra e aterradora. Excelente e muito didáctico, sobre Estaline e sobre a condição humana.
Belíssimo, sóbrio, depurado, muito bom filme, diferente do habitual deste géneros de filmes. Não há heróis nem demónios, apenas a luta pela sobrevivência, individual e de uma Nação.
Há dias assisti, na RTP play, ao filme Paula Rego: Secrets and Stories, de Nick Willing, seu filho. Vale a pena conhecer um pouco desta pintora, verdadeira artista cujo único objectivo na vida era pintar, que para ela era a própria vida. Na verdade só na pintura era capaz de reconhecer e expulsar os seus demónios, os seus medos, as suas esperanças e alegrias.
Através da pintura falava de si, consigo e com os outros, interpretando o seu sentimento para com os mais diversos assuntos, desde a violência da ditadura à violência do aborto. Com a pintura vivia as relações e as depressões, os problemas e as frustrações, reservada, tímida, introvertida, e um rio de personagens e cor nas telas. O seu estúdio é um manancial de figuras que faz e depois explora na pintura.
O relacionamento com o marido, o pintor Victor Willing, seu companheiro, orientador, inspirador e crítico da sua arte, modelou também tudo o que fez depois da sua morte. É comovente a sua carta de despedida que lhe endereçou e que ela conserva sempre consigo.
É também muito interessante perceber o relacionamento com aqueles que divulgaram a sua obra, uma vezes enganando-a, quando ela diz que todos lhe falavam dos preços elevadíssimos das suas obras de que ela não se apercebia, pois o que lhe davam era muito pouco, outras vezes dando-lhe a possibilidade de sobreviver, como a bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian.
Extraordinária e sentida homenagem que lhe faz o filho. E que luxo podermos partilhar as suas histórias.
Dorothy Vaughan & Kathryn Johnson & Mary Winston Jackson
Temos grande tendência a considerar as gerações mais novas ignorantes e irresponsáveis, sem interesse naquilo que achamos ser o essencial de conhecimentos, sentimentos, educação e cultura.
Outro dia, depois de assistir ao filme Elementos Secretos (Secret Figures), bastante agradável e leve, pus-me a pensar na estranheza com que nos apercebemos de que apenas há cerca de 50 anos havia segregação racial nos EUA, e o que isso significava no dia a dia das pessoas segregadas, para além da discriminação de género. O filme passa-se à volta do ano em que nasci. Como é possível para nós, hoje em dia, acreditarmos que havia uma sociedade compartimentada pela cor da pele? Talvez daqui a 50 anos a reacção dos nossos netos ou bisnetos seja a mesma quando virem as histórias contadas à volta de outros grupos e outras minorias, desencadeando incredulidades idênticas às que me assaltaram durante o filme.
Num salto de raciocínio apercebi-me de que, na altura em que assisti pela primeira vez ao documentário The World at War, nos anos setenta do século passado, tinham passado apenas 30 anos do fim da II Guerra Mundial. Que sabia eu do assunto? O que tinha aprendido no liceu? Eram matérias versadas nos currículos? Hitler, Mussolini, Estaline, o Holocausto, o anti-semitismo, a Guerra Civil Espanhola?
Por isso mesmo, quando nos espantamos com o desconhecimento dos jovens sobre o 25 de Abril de 1974, que aconteceu já há mais de 40 anos, é melhor percebermos que eles são tão ignorantes como nós éramos e o seu interesse ou desinteresse é semelhante ao que era o nosso.
As memórias têm que ser também construídas, activadas e reactivadas, para que os novos entendam o que se passou antes da sua geração, antes daquilo que lhes parece óbvio, permanente, eterno, e que é apenas uma fracção de segundo num tempo circular, que pode desaparecer, retroceder ou perecer.
É difícil de acreditar, mas é mesmo verdade. Florence Foster Jenkins foi uma herdeira rica que, provavelmente, poderia ter sido uma excelente pianista se não sofresse uma lesão no braço. Incapaz de aceitar a impossibilidade de continuar uma carreira como artista, Florence Foster Jenkins volta-se para o bel canto.
É um desastre inimaginável. Canta horrivelmente mal, desafina, não tem a menor noção do ritmo. Mas a sua paixão pela música, o dinheiro que tinha e que distribuía prodigamente pela elite local, que se aproveitava da sua generosidade, impediam-na de perceber a anedota em que os seus recitais se transformavam.
O seu amante - St. Clair Bayfield - tudo fazia para que as suas performances se mantivessem mais ou menos privadas, comprando jornalistas, críticos e amigos para que a fossem aplaudir e para que escrevessem boas críticas.
Florence Foster Jenkins é um filme que se vê com ternura. Apesar de ser de amor, não deixa de nos dar um olhar cruel sobre os artistas e sobre quem se acotovela e se acoita à sua volta, fazendo-nos reflectir nos salamaleques e nas trocas de favores que existem neste, como noutros meios.
Meryl Streep, que fez questão de ser ela própria a cantar, faz (mais) um excelente papel, tal como Hugh Grant e Simon Helberg, o pianista. A não perder.
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