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Meço o tempo pelas palavras/ cada vez mais curtas/ cada vez mais escassas/ cada vez mais duras/ instalando-se o silêncio/ nesta doce melodia/ do esquecimento.
Nunca aceitei geometrias de comportamentos simétricos
adequados a género e idade pés em bico empoleirados
pernas pesadas a espreitar pelas saias
casacos assertoados decotes a condizer
cabelos disciplinados lábios de rosas
anéis pulseiras colares arrebiques de senhora
que se acomoda nas vestes do seu destino.
Mas sobretudo nunca entendi o calar dos sentidos
dos desejos dos impulsos da vontade de abraços beijos
de gostar de quem se gosta muito ou tudo
sem cuidar dos outros das conveniências das inusitadas
e estranhas regras da sociedade.
Talvez porque o estado de adulto ainda não fez caminho
que chegue lá onde estão as memórias
e a imperiosa necessidade de amar e ser amada.
Tal como alguém me disse não há nada de novo
para além do que temos nada de belo nem obscuro
para além dos dedos que desenham a vida
concreta quotidiana lisa cinzenta.
O que me entristece é que trancaram até as rosas
que nunca semeei que espalharam pelo campo
o rumor da desistência que transformaram em nuvens
o grito estridente da solidão.
Nestes tempos sem abraços
Colhemos os passos
No som da memória
Nestes tempos sem história
Sorvemos instantes
Nos olhos distantes
Insistimos
Resistimos
Não desistimos
Vá de roda vai de roda
Vai de roda sem fartar
Já se foi e vem de volta
Vamos lá a confinar
Uma volta pra um lado
Fecha a porta por favor
A saltar pro outro lado
À janela sem andor
É preciso arejar
Com Inverno que frescor
Canta e dança mas sem par
Ser viral é um horror
Ora volta prá direita
Vamos lá todos votar
Ora torce bem à esquerda
Nesta estrada circular
Ora volta para cima
No carrocel da desgraça
Ora roda lá pra baixo
Abana bem a carcaça
Vá de roda vai de roda
Leva o vírus ao tapete
Vai na volta desta roda
Que a vida não se repete
Amo as rosas que nunca tive
os vasos quebrados as esquinas das portas
os tapetes que desbotam no sobrado.
Amo as vidraças enevoadas
as pequenas gotas de tristeza
que se acumulam nos dedos frios
as cortinas dependuradas a usura das folhas
os olhos cansados de tanto desejarem.
Amo as rosas que nunca tive
todos aqueles abraços que não guardei
e que esperam no fundo dos casacos
a oportunidade de secarem.
Talvez assim me seja revelada a vida
que queria e me neguei
por tantos objectos adorados
que se quebraram mal lhes toquei
frágeis cansados desistentes
numa poeira fina que anuncia
uma efémera e ilusória eternidade.
Owl
Arrumei o meu sapato
Procurei-lhe pelo par
Escondeu-se o ingrato
E eu saio a coxear
Tenho uma meia já posta
A outra por descobrir
Bem chamo mas a resposta
É que não se faz ouvir
Tivesse a roupa cem dedos
E o caminho cem luas
Inventava mil enredos
Com saias grandes e nuas
Tanta palavra que sobra
No sobrado da cabeça
Mesmo com tanta manobra
Não há verso que apeteça
De palavras me alimento
Secas pobres resignadas
Ato-as nas bordas do vento
Sopro-lhes gumes de espadas
Orações de pão e vinho
Solitária companhia
Atapetam-me o caminho
De tristeza e alegria
Escolho pedras são sinais
Das esquinas que encontramos
Pelos mundos desiguais
Pelos sonhos que encerramos
Com palavras me renovo
Em silêncios incontidos
É no amor que me devolvo
É nos gestos dissolvidos
Conto os dias que me faltam
Escrevo versos ressequidos
Que as palavras já não voltam
Aos meus dedos esquecidos
O abraço
Se o meu amor me deixar
Perdida na imensidão
Serei mais terra que mar
Fogueira de solidão
Se o meu amor regressar
Mãos vazias de ternura
Já não me vai encontrar
Em suave e lenta fervura
Se o meu amor viajar
Pelas terras do além
E a um canto semear
Pozinhos de fazer bem
Hei-de limpar-lhe de medo
A cama onde se deitar
Faço uma trança em segredo
Dos sonhos que ele guardar
Crio filhos como quem cria árvores.
Deixo-as varridas pelas intempéries
descobrindo pássaros e revivendo almas
dos que às suas sombras se recolhem.
De vez em quando arrastam braços
e arrancam raízes numa ânsia de movimento.
Nesses dias aparo troncos com sangue e lágrimas
cavo mais fundo a terra para que
do meu corpo se equilibrem de novo.
Aí para sempre me deitarei um dia dormindo
entre o lodo e a eterna revolução de viver.
Fracture
Em frente a mim sem espelho nem nuvens
apreendo o espaço que me rodeia
respiro as últimas gotas de passado
encerro o pó e a juventude.
Não sei das janelas do futuro
nem dos ninhos de águas revoltas
que me arrastavam pela vida.
Mas ainda me esperam as papoilas de Novembro
e o doce sabor da aventura.
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