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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Concerto para piano e orquestra nº 2 de Rachmaninov
Evgeny Kissin | Orquestra Filarmónica da Radio France
esperar que voltes é tão inútil como o
sorriso escancarado dos mortos na
necrologia dos jornais
e no entanto de cada vez que
a noite se rasga em barulhos no elevador e
um telefone se debruça de um sexto andar
sinto que ainda ficou uma palavra minha
esquecida na tua boca
e que vais voltar
para
a
devolver
[12º poema do livro "Os armários da noite"
Alice Vieira]
Paula Morelenbaum
Baden Powell & Vinicius de Moraes
Éramos dois
em tudo em tanto dois
um e um lado a lado
em tudo unidos e desarmados
perante a dor e a perda
desarmados de amor bendito
de amor inebriante de amor rugoso
de amor súbito e lento
de verde de verde
de vento bravio e sereno
de pedra
Éramos dois
e na escura imensidão que me rodeia
no silêncio vazio em que me encerro
por ti desespero por ti anseio
meu amor ausente
para sempre
Um ramo de folhas duras
Pedacinhos de luar
A alma feita em costuras
De feridas por sarar
Aconchega o olhar
No piso de tanta ausência
Apresta-se a respirar
Um mundo sempre em carência
Nesta branda consoada
À espera do nascituro
Tristeza bem arrumada
No fundo do seu futuro
Camille Claudel
Van Gogh
Perdida nas palavras que me faltam
no opaco da névoa da tristeza
perdida no silêncio que me envolve
agarro alguns pontos de luz
aqueles com que polvilhaste o meu caminho.
Ainda não conheço o desenho certo
mas hei de lá chegar.
Hoje foi quando barrava o pão com manteiga. De repente apareceste, com as tuas mãos desajeitadas, a pegar numa chávena grande para que eu te deitasse o café, antes de rumares ao teu assento no escritório.
Outras vezes, quando me emociono a ver um filme, o que não é nada difícil nem raro, vejo-te a entrar pela porta, com aquele sorriso ternurento e gozão, que me deixava irritada e envergonhada, pela fraqueza que mostrava, mesmo sendo a ti.
Não precisava de marcar um encontro contigo, pois encontrávamo-nos, mesmo sem combinarmos. Numa pergunta, numa razão, numa ternura, numa discussão, numa espera, num silêncio, num desespero, numa diversão.
Acabaste por faltar ao último encontro, sem me dizeres porquê.
E eu, mesmo que não queira, ainda te espero, mesmo que saiba que não vens. Podias, pelo menos, encostares-te a mim, como costumavas fazer, e dizeres os disparates que me faziam rir. Só mais esta vez. Só mais uma vez.
The Lone House (The Empty House)
John R. Grabach
Lentifico os movimentos os gestos os passos
a casa aproxima-se e eu vazia
a chave na porta e o silêncio do outro lado.
Não sei como encher os cantos se a tua voz me falta.
Abro o volume do rádio o mais alto que posso
para que a saudade não me ensurdeça.
No cais da vida espero
A barca do meu amor
Abafo o meu desespero
Asfixio a minha dor
Chegará de madrugada
Guiada pelo clarão
De uma lua iluminada
Pelos olhos da paixão
A alma que se quebrou
No dia em que tu partiste
Em asas se transformou
Num voo que não desiste
No cais desta vida aguardo
O momento de embarcar
Que eu meu amor já não tardo
Na ânsia de te abraçar
O meu amor é de pedra
E mora no vento norte
Tal com a tristeza medra
No leito da sua morte
O meu amor é eterno
E mora na tempestade
Tal como o manto de inverno
Veste de branco a saudade
O meu amor já não parte
No lume da ventania
Tal como a min’ alma arde
Em permanente agonia
1.
Não sei para onde me dirigir. Para cima? Para o lado? Para a terra? Nunca irei outra vez ao jardim das gavetas de pedra, porque não é lá que tu estás, só o teu envelope.
Mas então para onde? Era tão mais fácil acreditar que, nalguma etérea dimensão, continuas e me ouves, e te ris de mim, e me aconchegas com o olhar, e que me recebes com a delicadeza das atenções que te envergonhas de assumir, mas que adoras que eu reconheça e tu diga.
Como explico que, antes, gostava de ir até ao rio sozinha, beber café, cirandar, ler o jornal, beber o ar, e agora me faltam as pernas, os olhos, a alma, o interesse, o ânimo? Como explicar o meu anterior gosto pelo isolamento, a minha economia de palavras, que acompanhavas e respeitavas, que agora se transformou numa prisão de letras, sons, significados, de tal forma que se avolumam em mim, não conseguindo impedir o transborde da tristeza? Como posso explicar que não consigo deixar de fechar a porta, já que não estás do outro lado para trocarmos impressões, cada um no seu canto, mas transmitindo opiniões e carinho entre paredes?
Hoje marquei na agenda vários concertos, para que a música me consiga preencher este vazio. Comprei até os bilhetes, muito arrumadinhos na pasta para isso criada no meu computador. Mas depois a quem conto o que ouvi, o que vi, o que senti? Com quem falo dos compositores, das orquestras, dos intérpretes?
Assim não. Assim não. Assim não.
2.
Dizem-me que devo chorar sem limites, nem pena, nem pejo, mas se choro lembram-me da força que é suposto ter, da inquestionável fortaleza da minha alma.
Dizem-me que tenho de superar, quando nem ideia fazem do que há para ultrapassar, ou sequer se o quero fazer.
Dizem-me para sair, para me distrair, quando nem desconfiam da revolta que sinto por a vida continuar sem que estejas comigo, quando não percebem que nada me pode distrair.
Dizem-me que tenho de viajar, para longe, para muito longe, quando não entendem que as viagens eram nossas, tu e eu, pelos caminhos de tantos mundos, imaginados ou calcorreados, abraçados ou detestados, tantos livros, tantos sonhos, tudo o que me interessava na vida.
E eu encolho no meio de tanta boa-vontade, no meio da culpa de ensurdecer a tantas sugestões, fechando portas, olhos, luzes, e ficando à espera de que, finalmente, resolvas regressar.
3.
Pela casa espalham-se pedaços de uma existência que já foi. Que vazias as roupas, transformadas em trapos sem préstimo nem brilho. Que velhos os livros, repentinamente amarelecidos e quebradiços, as folhas soltas, as letras desvanecidas.
Olho para estes restos que nada são, sem som nem cheiro, e não consigo tocar-lhes, dar-lhes destino. Pela casa estão espalhados fragmentos de uma memória que teimo em querer manter em matéria, quando tudo se tornou imaterial.
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