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A escalada da violência pelos extremismos de direita

por Sofia Loureiro dos Santos, em 11.06.25

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Temos já, tal como se previa, todos os ingredientes para a tomada do poder pela extrema-direita.

Temos como bodes expiatórios os imigrantes; temos o controlo da maior parte dos media pela direita e extrema-direita; temos uma manipulação doentia da informação, dando palco diariamente aos apóstolos das teorias fascistas e fascizantes, nomeadamente à "percepção" da violência e à insegurança, associando-as precisamente à imigração; temos a intimidação e a violência sobre os criadores, arrasando com a liberdade de interpretação, de criação, anunciando nova e mais cruentas violências (a minha solidariedade para com os actores da companhia "A Barraca").

Temos os partidos de extrema-direita a chegar ao poder e o desaparecimento sistemático dos partidos e movimentos que combatem o racismo, a xenofobia, a intolerância aos outros, aos diferentes, às minorias, retirando-lhes a dignidade e a possibilidade de viverem a sua vida sem que ninguém interfira.

Temos uma ignorância que se espalha à velocidade da luz, os antivacinas, os anti-investigação, os antiverdade, tal como o orgulho nessa ignorância. Temos a mentira, o escarninho, a cobardia, o ódio acicatado pelos odiosos e ignorantes, reduzindo a linguagem e o discurso a poucos e distorcidos vocábulos, do qual a vergonha desapareceu. Vergonha pelo que, na nossa sociedade, se considera um viver digno, como a paz, a solidariedade, a democracia, o compromisso com os outros, a liberdade.

Precisamente no dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, após um excelente discurso de uma criadora (completo aqui). Precisamente quando deveríamos sentir e aplaudir a maravilha de sermos uma mistura de tantos outros. Só isso dá riqueza à nossa evolução. Precisamente quando a homenagem e a condecoração de Ramalho Eanes nos comove e nos lembra o que é a cidadania, o serviço público, o compromisso com os outros.

«DESAFIO E CIRCUNSTÂNCIA

1.

Muito obrigada, Senhor Presidente da República, por me ter convidado a juntar-me às Celebrações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, neste ano de 2025. Não estava no meu horizonte, mas agradeço-lhe.

Os países escolhem datas de referência para celebrarem a sua História, contemplando memórias de batalhas, acções de independência, encontros civilizacionais, momentos importantes em torno dos quais concitam a unidade dos cidadãos e promovem o orgulho patriótico. Mas em Portugal é a data da morte de um poeta que protagoniza o nosso momento cívico de unidade mais relevante.

Muito se tem discorrido sobre o significado desta nossa singularidade. E muitas vezes é difícil explicar que não se trata de um sinal de melancolia, mas sim do seu oposto – a assunção de que um poeta do século XVI nos legou uma obra tão vigorosa que acabou por ser adoptada no seu conjunto como exemplo da vitalidade de um povo. E que a própria biografia do seu autor se oferece como exemplo não só de um percurso português, mas se transformou em símbolo universal da nossa peregrinação prometeica sobre a Terra. A fidelidade que Camões manteve em relação à pátria, quando se encontrava em paragens remotas, alimenta a simbologia que lhe é atribuída como exemplo da proximidade que os portugueses, que se encontram longe, mantêm com a sua cultura de origem. O país retribui-lhes reconhecendo desde há muito que as Comunidades Portuguesas são corpo essencial do nosso ser identitário.

Mas as Celebrações deste ano de 2025 têm um cunho muito particular. Em primeiro lugar porque voltam a ter lugar na cidade de Lagos. No século passado foi cidade anfitriã em 1996. Passados vinte e nove anos, esta cidade do Algarve continua a ser democrática, livre, próspera. O que mudou, e o que justifica que de novo tenha sido escolhida para ser palco das celebrações, foi a nova consciência de que Lagos passou a representar um lugar obrigatório quando se pretende avaliar as relações entre os povos ao longo dos séculos.  

É sabido que Lagos, lugar de saída para África, e lugar do comércio prático, tem como símbolo complementar o Promontório de Sagres. A escassos quarenta quilómetros de distância, Sagres e Lagos representam historicamente uma dualidade contrastiva cujo papel se encontra em avaliação. A comunicação digital que se afirmou a partir dos anos noventa, permite agora uma divulgação ampla dos estudos que os arqueólogos, antropólogos e historiadores estão a realizar neste espaço geográfico antes designado por Terras do Infante. Era altura de atribuir a Lagos, de novo, o estatuto de cidade merecedora de acolher estas celebrações, e de fazer reflectir a sua importância como polo aglutinador de interesse cultural.

Mas há outro motivo para que este ano a Celebração deste Dia seja particular. Desde há dois anos que estamos a evocar o nascimento de Camões, ocorrido há quinhentos anos, presume-se que entre 1524 e 1525. Calcula-se que assim tenha sido, mas vale a pena reflectir sobre o facto, pois tal como não sabemos como decorreu a sua infância nem a sua formação, também desconhecemos o local e o dia em que o poeta nasceu. Para sermos justos, sobre a sua vida inicial, apenas podemos dizer o que um célebre maestro disse sobre Beethoven – Um dia Camões nasceu e nunca mais morreu.

2.

Nunca mais morreu.

Provam-no a forma como passados cinco séculos tem sido revisitado ao longo destes dois últimos anos. As escolas, a academia, o mundo da edição, os vários campos das artes e das ciências humanísticas em Portugal têm dado rosto a toda uma espécie de comemoração espontânea e informal em torno do nosso poeta maior. Novos autores têm surgido actualizando a exegese sobre os seus poemas e o conhecimento acumulado em torno da vida de Camões. O jovem ensaísta Carlos Maria Bobone pôs recentemente em relevo o papel decisivo que Camões desempenhou ao fixar uma língua nova à altura de um pensamento novo, que resultaria definitivamente na Língua Portuguesa Moderna que hoje usamos. Demonstrou como a Língua Portuguesa, manobrada no seu esplendor, resultou como uma dádiva que devemos ao “grande cantor do Oceano” como lhe chamou Baltazar Estaço.

Por sua vez, a biógrafa Isabel Rio Novo, numa visita recente profusamente documentada que faz à vida de Camões, no final, não deixa de se comover com os testemunhos sobre os últimos dias do poeta, demonstrando que as histórias que correm sobre certos passos da sua vida afinal não são lendas, são verdades. O receio de sermos românticos não nos deveria afastar da realidade testemunhada. E assim, a mim não me pareceria errado que os adolescentes portugueses conhecessem o comentário que Frei José Índico redigiu na margem de um exemplar de Os Lusíadas presumivelmente oferecido pelo próprio autor na hora de partir. Escreveu o frade – “Yo lo vi morir en un hospital en Lisboa, sin tener una sabana con que cubrirse (…) después de haber navegado 5.500 leguas per mar.”

Assim foi, sem um lençol. Terá sido um amigo quem lhe enviaria a sabana, já depois de morto. Não me parece que daí se devam retirar conceitos patrióticos ou antipatrióticos. Conceitos sobre a vida humana e o seu mistério, isso talvez. Entretanto, por contraste, sobre a obra que deixou, milhares de páginas de novo têm sido escritas, confirmando a dimensão invulgar do poeta que foi. Hélder Macedo, um dos seus leitores mais subtis, disse recentemente numa entrevista que se Camões tivesse continuado a viver, ninguém mais em Portugal teria sido capaz de escrever um verso. Essa hipérbole é linda.

Assim como é reconfortante saber que os professores deste país continuam a ler às crianças epigramas, redondilhas e vilancetes de Camões como se fossem filmes modernos feitos de palavras, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados do seu poeta maior.

3.

Mas se o patrono destas Celebrações é o poeta do virtuosismo verbal e do amor conceptual, o amor maneirista, o poeta do questionamento filosófico e teológico como é em Sobolos Rios que Vão, e o poeta dos longos versos enfáticos sobre o heroísmo dos viajantes do mar, ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase quinhentos anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos, tão em conformidade com os tempos em que ele próprio viveu.

Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo, e sobre a consciência dessa mudança, no conjunto das mil cento e duas oitavas que compõem Os Lusíadas, vinte e duas delas contêm avisos explícitos sobre a crise que se vivia então. Aliás, hoje é ponto assente que o poema épico encerra um paradoxo enquanto género. O paradoxo de constituir um elogio sem limites à coragem de um povo que havia resultado na criação de um Império e, em sentido oposto conter a condenação das práticas que passados cinquenta anos impediam a manutenção desse mesmo império. E nesse campo, pode-se dizer que Os Lusíadas, poema que no fundo justifica que o Dia de Portugal seja o Dia de Camões, expressa corajosas verdades, dirigidas ao rosto dos poderes que elogia.

É bom lembrar que entre os séculos XVI e XVII três dos maiores escritores europeus de sempre coincidiram no tempo apenas durante dezasseis anos, e no entanto os três desenvolveram obras notáveis de resposta ao momento de viragem de que eram testemunhas. Foram eles Shakespeare, Cervantes e Camões. De modo diferente, mas em convergência, procederam à anatomia dos dilemas humanos, e entre eles os mecanismos universais do poder, corpus que continua válido e intacto até aos nossos dias. Sobre o poder grandioso, o poder cruel, o poder tirânico, e o poder temeroso e o poder laxista.

No caso de Camões, de que se queixa ele quando interrompe o poema das maravilhas da História para lembrar a mesquinha realidade que envenenava o presente de então? Queixava-se da degradação moral. Mencionava o vil interesse e sede immiga/ do dinheiro, que a tudo nos obriga, e evocava entre os vários aspectos da degradação o facto de sucederem aos homens da coragem que tinham enfrentado o mar desconhecido, homens novos, venais, que só pensavam em fazer fortuna. Mais do que isso, queixava-se da subversão do pensamento. Queixava-se da falta de seriedade intelectual que resultava, depois, na prática, na degradação dos actos do dia a dia. Escreve o poeta no final do Canto VIII – Este deprava às vezes as ciências,/ Os juízos cegando e as consciências (…) Este interpreta mais do que sutilmente/ Os textos; este faz e desfaz leis;/ Este causa os perjúrios entre a gente/ E mil vezes tiranos torna os Reis…

4.

Na verdade, Camões, Cervantes e Shakespeare, de modos diferentes, expuseram os meandros da dominação, envolvidos com o tempo histórico dos impérios em que viveram. Por essa altura, sobre os reis de Portugal, Espanha e Inglaterra dizia-se que lutavam entre si pelo domínio do Globo Terrestre. Ou, mais concretamente, dizia-se então que os três competiam para ver quem acabaria por pendurar a Terra ao pescoço como se fosse um berloque. Os três autores perceberam bem que em dado momento é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência. Escreveu Shakespeare no Acto IV do Rei Lear – É uma infelicidade da época que os loucos guiem os cegos.

Enquanto isso, Cervantes criava a figura genial do alucinado Dom Quixote de la Mancha que até hoje perdura entre nós como o nosso irmão ensandecido. Por seu lado, Camões, no corpo de Os Lusíadas não falou da loucura, mas a vida haveria de lhe demonstrar que as páginas escritas por si mesmo haviam sido proféticas em resultado dela, a insanidade. O desastre de Alcácer Quibir, ocorrido em 1578, estava assinalado numa das últimas estrofes do canto X. Era a História, como sempre, a confirmar o pressentimento experimentado pela Literatura. No entanto, o fim de ciclo que neste caso aqui interessa não é mais uma transição localizada que diga apenas respeito a três reinos da Europa. Nos dias que correm, trata-se do surgimento de um novo tempo que está a acontecer à escala global.

Porque nós, agora, somos outros, deslocamo-nos à velocidade dos meteoros, e estamos cercados de fios invisíveis que nos ligam pelo Espaço. Mas alguma coisa desse outro fim de ciclo que se seguiu ao tempo da Renascença malograda, relaciona-se com os dias que estamos a viver. O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a Terra redonda é disputada por vários pescoços em competição, como se mais uma vez se tratasse de um berloque. E os cidadãos? São público que assiste a espectáculos em écrans de bolso. Por alguma razão os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas. É contra isso, e por isso, que vale a pena que Portugal e as Comunidades Portuguesas usem o nome de um poeta por patrono.

5.

Por isso mesmo, também, vale a pena regressar a Lagos.

Sobre estes areais aconteceram momentos decisivos para o mundo. No início da Idade Moderna, Lagos e Sagres representaram tanto para Portugal e para a Europa que à sua volta se constituíram mitos que perduram. O Promontório e a silhueta do Infante austero que sonhou com achamento de ilhas e outros descobrimentos, como parte de uma guerra santa antiga, e tudo realizou a poder de persistência férrea e sagacidade empresarial, transformou-se numa figura de referência como criador de futuros. À sua figura anda associado um sonho que se realizou e depois se entornou pela Terra inteira, e a lenda coloca-o a meditar em Sagres. Numa referência um tanto imprecisa mas que permite a sua evocação, Sophia escreveu – Ali vimos a veemência do visível/ O aparecer total exposto inteiro/ E aquilo que nem sequer ousáramos sonhar/ Era o verdadeiro.

Esta ideia de que na mente do Infante se processou uma epifania anda-lhe associada enquanto mentor de uma equipa, mais ou menos informal, que teve a capacidade de motivar e dirigir. Sagres passou assim para a História e para a mitologia como o lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o Mundo. Mas existe uma outra perspectiva, como é sabido, e hoje em dia, o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos Descobrimentos não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora.

É verdade que a deslocação colectiva que permitiu estabelecer a ligação por mar entre os vários continentes, e o encontro entre povos, obedeceu a uma estratégia de submissão e rapto cujo inventário é um dos temas dolorosos de discussão na actualidade. É preciso sempre sublinhar, para não se deturpar a realidade, que a escravatura é um processo de dominação cruel tão antigo quanto a Humanidade, o que sempre se verificou foi diversidade de procedimentos e diferentes graus de intensidade. E é indesmentível que os portugueses estiveram envolvidos num novo processo de escravização longo e doloroso. Lagos, precisamente, oferece às populações actuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico. Fá-lo com o sentido justo da reposição da verdade, e do remorso, pelo facto de aqui se ter inaugurado o tráfico negreiro intercontinental em larga escala, com polos de abastecimento nas Costas de África, e assim se ter oferecido um novo modelo de exploração de seres humanos que iria ser replicado e generalizado por outros países europeus até ao final do século XIX.

6.

Lagos expõe a memória desse remorso. Mostra como num dia de Agosto de calor tórrido de 1444, aqui desembarcaram 235 indivíduos raptados nas costas da Mauritânia, e como foram repartidos e por quem. Alguém que muito prezamos encontrava-se em cima de um cavalo e aceitou o seu quinhão de 46 cabeças. Esse cavaleiro era nem mais nem menos do que o Infante Dom Henrique. Lagos não se furta a expor essa verdade histórica. Lagos também mostra o local onde depois, em levas sucessivas, iriam ser mercadejados os escravos. E mais recentemente relata-se como eram atirados ao lixo, quando morriam, sem um pano a envolver os corpos. Até agora foram retirados desse monturo os restos mortais de 158 indivíduos de etnia banta. Lagos mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita. Talvez por isso estejamos aqui no Dia de hoje.

Aliás, a Unesco criou a Rota do Escravo, e inscreveu Lagos na Rota da Escravatura para que saibamos como os seres humanos procedem uns com os outros, mesmo quando se fundamentam em religiões fundadas sobre os princípios do Amor e sob a Lei dos Direitos Humanos. Lagos mostra esse filme e faz-se parente de quem escreveu na porta de um lugar de extermínio moderno o pedido solene – “Homens não se matem uns aos outros”.

7.

É verdade que só conhecemos o que sucedeu naquele dia 8 de Agosto de 1444 porque o cronista do Infante Dom Henrique o narrou. Eanes Gomes de Zurara não conseguiu evitar um sentimento de compaixão e comentou, de forma comovida, como a chegada e a partilhas dos escravos era cruel. Felizmente que dispomos dessa página da Crónica dos Feitos da Guiné para termos a certeza de que havia quem não achasse justo semelhante degradação e o dissesse. Aliás, sabemos que sempre houve quem repudiasse por completo a prática e o teorizasse. Numa das paredes de um dos museus de Lagos está escrito o testemunho de um autor quinhentista que denuncia a injustiça – “… eles não nos ofendem, não nos devem, nem temos justa causa para lhes fazer guerra, e sem justa guerra, não os podemos cativar nem comprar”.

O que significa que Lagos, a cidade dos sonhos do Infante, de que Sagres é a metáfora, passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros. Esta tornou-se, pois, uma cidade contra a indiferença. É uma luta nossa, contemporânea. Em Lagos, hoje em dia, está presente, de outro modo, a mensagem do cartoon de Simon Kneebone datado de 2014 que tem corrido mundo – A cena é nossa contemporânea, passa-se no mar. Num navio enorme, aparelhado com armas defensivas, no alto da torre está um tripulante que avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de migrantes. O tripulante da grande embarcação pergunta – De onde vêm vocês? Da lancha apinhada alguém responde – Vimos da Terra. Sugiro que os jovens portugueses, descendentes de cavadores braçais, marujos, marinheiros, netos de emigrantes que partiram descalços à procura de trabalho, imprimam este cartoon nas camisas quando vão ao mar.

8.

Consta que em pleno século XVII, dez por cento da população portuguesa teria origem africana. Essa população não nos tinha invadido, os portugueses os tinham trazido arrastados. E nos miscigenámos. O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro, a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade. Cada um de nós é uma soma. Tem sangue do nativo e de migrante, do europeu e do africano, do branco e do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizava, filhos do pirata e do que foi roubado. Mistura daquele que punia até à morte e do misericordioso que lhe limpava as feridas.

A consciência dessa aventura antropológica talvez mitigue a fúria revisionista que nos assalta pelos extremos, nos dias de hoje, um pouco por toda a parte, agora que percebemos que estamos no fim de um ciclo e que um outro se está a desenhar, e a incógnita existencial sobre o futuro próximo, ainda desconhecido, nos interpela a cada manhã que acordamos sem sabermos como irá ser o dia seguinte. A pergunta é esta – Quando ficarem em causa os fundamentos institucionais, científicos, éticos, políticos, e os pilares de relação de inteligência homem/máquina entrarem num novo paradigma, que lugar ocuparemos nós como seres humanos? O que passará a ser um ser humano?

9.

Comecei por dizer que Camões nasceu e nunca mais morreu.

Regresso à sua obra para procurar entender que conceito tinha o poeta sobre o que era um ser humano. Sobre si mesmo, toda a sua obra o revela como vítima da perseguição de todas as potestades conjugados. A sua obra lírica é uma resposta a esse abandono essencial. Em conformidade com essa mesma ideia, ao terminar o Canto I de “Os Lusíadas”, Camões define o ser humano como um ente perseguido pelos elementos – “Onde pode acolher-se um fraco humano,/ onde terá segura a curta vida,/ Que não se arme e se indigne o Céu sereno/ Contra um bicho da Terra tão pequeno?”

Nestes versos se reconhece o conceito renascentista, o da grandeza da solidão do ser humano e a sua luta estoica centrada na confiança em si mesmo. Mas, na prática, essa atitude representava uma orfandade orgulhosa, que facilmente a fortuna não reconhecia. Curiosamente, no final da vida, o corpo de Camões só teve um lençol, e oferecido, a separá-lo da terra. A sorte do seu corpo não difere muito daquela que mereceram os corpos dos escravos de Lagos. Mas, entretanto, no século XIX, o direito à protecção beneficiada pelo estado começou a emergir, criaram-se documentos essenciais tendo em vista o respeito pelos cidadãos. Depois da duas Guerras Mundiais do século XX, foi redigida e aprovada a Carta dos Direitos Humanos, e durante algumas décadas foi tentado implantá-los como código de referência um pouco por todo o mundo. Só que ultimamente regride-se a cada dia que passa.

O conceito da representatividade respeitável da figura de chefe de estado oriundo do povo grego, princípio que sustentou a trama purificadora das tragédias clássicas, a que se juntou, depois, o princípio da exemplaridade colhida dos Evangelhos, essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre os dignos, está a ser subvertida. A cultura digital subverteu a regra da exemplaridade. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende. Um chefe de estado de uma grande potência durante um comício pôde dizer – Adoro-vos! Adoro os pouco instruídos! E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto, pois, qual é o conceito hoje em dia do ser humano? Como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais?

Hoje, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, não será legítimo perguntar, sem querer ofender quem quer que seja, perguntar como manteremos a noção de ser humano respeitável, livre, digno, merecedor de ter acesso à verdade dos factos e à expressão da sua liberdade de consciência?

Nós, portugueses, não somos ricos, somos pobres e injustos, mas ainda assim, derrubámos uma longuíssima ditadura, e terminámos com a opressão que mantínhamos sobre diversos povos, e com eles estabelecemos novas alianças, e criámos uma Comunidade de Países de Língua Portuguesa, e fomos capazes de instaurar uma democracia e aderir a uma União de países livres e prósperos que desejam a paz. Assim sendo, por certo que ainda não temos as respostas, mas perante as incógnitas que nos assaltam, sabemos que temos a força.

Leio Camões, aquele que nunca mais morreu, e comovo-me com o seu destino, porque, se alguma coisa tenho em comum com ele, que foi génio, e eu não sou, é a certeza de que partilho da sua ideia de que um ser humano é um ser de resistência e de combate. É só preciso determinar a causa certa.

Muito obrigada.

Lagos, 10 de Junho, 2025.

Lídia Jorge»

Só falta o queimar dos livros. E o que se lhe seguirá.

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publicado às 18:26

Desinformação e manipulação nos media tradicionais

por Sofia Loureiro dos Santos, em 05.04.25

A forma como somos manipulados pela informação, feita por jornalistas credenciados, é triste e afasta, cada vez mais, os cidadãos dos media tradicionais. Na verdade, começam a ficar muito parecidos com a "informação" das redes sociais. Perigoso, muito perigoso.

Vem isto a propósito da forma como se insinua sem o afirmar, que a melhoria do ranking de uma escola pública está associada à proibição do uso de telemóveis pelos alunos, desde janeiro deste ano. Ou seja, há cerca de 3 meses.

"Escola pública que lidera 'ranking' com melhor média de exames proibiu telemóveis em janeiro"

Está, portanto, instalada a certeza de que os smartphones são uma desgraça para os alunos, razão e explicação de tantos problemas, desde o aproveitamento escolar à violência entre jovens.

Em termos de declaração de interesses, tendo imenso a concordar com esta opinião. Mas convém explorarmos o tópico, antes de tentarmos ligar uma coisa à outra, sem qualquer juízo crítico. Isso deveria ser uma prioridade no trabalho jornalístico, mas não é.

Como exemplo, cito um artigo publicado em setembro de 2024, no Journal of Psychologists and Counsellors in Schools, cujas autoras (Marilyn Campbell e Elizabeth Edwards) fizeram uma revisão da literatura sobre o tema (total de artigos encontrados n=1317, total estudado após critérios de exclusão n=22), realizados em múltiplos países: Bermudas, China, República Checa, Gana, Malawi, Noruega, África do Sul, Espanha, Suécia, Tailândia, Reino Unido e Estados Unidos da América. Concluíram que há muito poucas evidências, se não nenhumas, sobre o efeito que a ausência de telemóveis nas escolas resulte na melhoria do rendimento escolar, saúde mental e cyberbulling. Mais concluíram uma significativa falta de evidências que suportem decisões fundamentadas (retirar ou não os telemóveis do espaço escolar).

Noutro artigo mais recente (fevereiro de 2025), na revista The Lancet Regional Health - Europe, conclui-se não haver evidências que as políticas restritivas, em relação ao uso de telemóveis e redes sociais, que associem o seu uso a melhor saúde mental.

A manipulação e incompetência dos jornalistas, a preguiça ou a intenção de enganar e induzir comportamentos, instalou-se. É cada vez mais difícil destrinçar a verdade verdadeira das meias verdades ou mentiras com que somos continuamente inundados.

Não significa isto que não haja mais estudos que digam o contrário, ou que não sejam necessários muitos mais. Mas ligar 3 meses de ausência de telemóveis a melhoria no ranking é, manifestamente, desonesto e abusivo.

Sugestões:

Uso de telemóveis no Espaço Escolar: revisão da Literatura e Orientações Práticas

School phone policies and their association with mental wellbeing, phone use, and social media use (SMART Schools): a cross-sectional observational study

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publicado às 15:21

Magusto

No dia de São Martinho lume, castanhas e vinho

por Sofia Loureiro dos Santos, em 11.11.24

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José Malhoa

Nunca percebi porque se chama Magusto à tradição de comer castanhas assadas com Jeropiga.

Segundo o Priberam:

- Castanha - "Origem etimológica: latim castanea, - ae"

- Assada - "Origem etimológica: latim asso, - are"

- Magusto: "Origem etimológica: origem duvidosa, talvez do latimustus, - a, - um, particípio passado de uro, urere, queimar."

No que parece estarem todos de acordo é que há uma lenda associada a esta festa, que se relaciona com o bom sentimento de um soldado romano Martinho de Tours (Martinus Turonensis) que viveu no século IV e foi, posteriormente, o São Martinho. Este Santo, que não comungava das novas ideologias da pós-verdade e da ultra-direita tramontana, egoísta, individualista, racista, xenófoba e sexista, tendo-se aproximado de um pobre quase nu, num dia frio e chuvoso, resolveu dividir a sua capa em duas, usando a espada, para que o coitado se cobrisse. Deu-se então um milagre (que deve ter pesado na sua canonização) e o dia tornou-se suave e solarengo - daí o Verão de São Martinho. A ciência, no entanto, embora confirme o fenómeno, é bem mais desinteressante que a história popular:

"(...) Ora, este evento climático, tem uma explicação meteorológica. O período de transição entre o verão e o inverno traduz-se na união do anticiclone subtropical do Atlântico Norte (Anticiclone dos Açores) com o Anticiclone da Sibéria. Durante este processo, a variabilidade do estado do tempo é elevada, com sucessivas passagens da Frente Polar. Contudo, no período em torno da primeira década de Novembro, ocorre em média um abrandamento e, até, uma inversão do fluxo zonal (de oeste) em altitude. Tal inversão, traduz num enfraquecimento ou mesmo bloqueio da Frente Polar sobre a Europa do Sul e, por vezes, verificando-se a predominância de dias com menos nebulosidade e menos precipitação, ou seja, uma relativa melhoria do estado do tempo. (...)"

IPMA

É uma altura em que, em nome de todos os bons rituais cristãos e familiares, se podem comer castanhas cozidas e / ou assadas, acompanhadas de Jeropiga (ou vinho novo). Ao contrário do Magusto, que se celebra em terras portuguesas, galegas e até estremenhas, em áreas em que a língua (e os costumes) têm origens galaico-portuguesas, a Jeropiga é apenas portuguesa.

Resolvi fazer castanhas assadas no forno, usando esta receita.

1. Pré aquecer o forno a 200 graus

2. Lavar as castanhas

3. Fazer-lhes um golpe lateral, mas que não as divida (cuidado, que este procedimento é perigoso)

4. Colocar as castanhas num recipiente, cobertas com água a que se adicionou sal grosso

5. Ao fim de 20 minutos, espalham-se pelo tabuleiro do forno e cobrem-se com mais sal grosso

6. Vão 40 minutos a assar (eu revolvi-as ao fim de 20 minutos)

7. A seguir tempera-se com alecrim, deitam-se numa tigela e cobrem-se com um pano

8. Dez minutos depois, comem-se

Não ficaram nada mal. A Jeropiga já tinha desaparecido do supermercado, por isso foi substituída por Moscatel de Favaios.

E, na busca de um momento musical que representasse esta ocasião gastronómico-religiosa-artesanal, tenho a certeza de que deixaria orgulhoso alguém que, tantas vezes, descobriu as canções mais extraordinárias e hilariantes, a propósito de tudo e de nada.

Espero não te desmerecer, meu querido companheiro de tantos Magustos.

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publicado às 20:10

Da queda do regime democrático (republicação)

post com 10 anos

por Sofia Loureiro dos Santos, em 21.06.24

Republico um post que tem 10 anos.

O triste espetáculo a que temos assistido por parte dos agentes da Justiça, com buscas e acusações e inquéritos e escutas telefónicas, com divulgações cirúrgicas das mesmas, comissões parlamentares vergonhosas, enfim, a delapidação das Instituições.

Infelizmente, acho que este meu post é bem atual.

No intervalo destes últimos 40 anos, o mundo mudou radicalmente. O desenvolvimento tecnológico exponencial permitiu maior longevidade e qualidade de vida, nos países a que se convencionou chamar desenvolvidos, maior riqueza e bem-estar, melhor e mais rápida divulgação com as novas tecnologias de informação.

Politicamente a queda do muro de Berlim, o ataque às Torres Gémeas em Nova Iorque, a consolidação e alargamento da União Europeia, o despertar dos países da América do Sul, o crescimento da China e da Índia, os fenómenos de migração populacional, entre muitos outros, modificaram os equilíbrios existentes a um ritmo crescente, transformando o mundo numa massa globalizada, que cria riqueza mas que a concentra em cada vez menores núcleos de indivíduos, aumentando o fosso entre os que mais podem e os que nada podem.

Percebemos hoje que não tem havido capacidade, imaginação nem vontade de lidar com os novos problemas que se avolumam – as alterações demográficas, o reacender dos ódios (xenofobia e racismo), as alterações climatéricas, a gestão dos recursos naturais. Em Portugal e na Europa assiste-se a um cada vez maior divórcio entre os governantes, os líderes dos partidos e os representantes das diversas associações sociais (sindicatos, confederações patronais, industriais, etc) e a restante população, aumentando a descrença neste regime democrático em que esses mesmos governantes, líderes e representantes são, por definição, eleitos livremente.1

A total subversão do papel da comunicação e da informação, fruto da revolução informática, transformou a vida, os direitos, as liberdades e o conceito de justiça numa paródia, assistindo-se à construção e destruição de carácter e de factos, mais falsos que verdadeiros, numa roda-viva dentada que tritura pessoas, instituições, conceitos. A manipulação das vontades e dos sentimentos globais movem as multidões e aqueles que deveriam ser os dirigentes deixam-se dirigir pelas ondas de protesto, indignação, fúria ou júbilo que todos os dias assolam a sociedade.

Estas organizações políticas não conseguem mobilizar os cidadãos, que deixaram de acreditar no que lhes é dito e repetido. A vida vai correndo à parte do que é cozinhado nas cadeiras dos diversos poderes e a raiva surda com o encolher de ombros vai sendo a atitude de quem quer manter a mínima sanidade mental. É confrangedor ouvir as frases gastas, os clichés, as palavras de ordem de governooposição, comentadores, economistas, sindicalistas e outros membros que gravitam na órbita desta elite, sem centelha, sem ideias, sem glória.

Ao contrário de tanta coisa que se modificou nos últimos 40 anos, nada se quer mudar nesta organização política formal, porque já é só formalidade e alimentação de interesses de poder, sem que importe a sociedade, o seu respirar, o seu viver, a sua felicidade. A riqueza e o poder deixaram de ser meios para serem fins, e o governo da nação deixou de se preocupar com a própria nação para se preocupar com os que a governam, num mundo ficcional e desligado da realidade.

Por isso é cada vez mais provável a queda do regime democrático. Ninguém acredita nele. Continuamos neste romance de faz-de-conta até que, provavelmente tarde de mais, outro regime ditatorial tome conta de nós. É que eu não conheço mais nenhum tipo de regime – democracia e ditadura podem ter várias práticas e vários nomes, mas são apenas essas as alternativas - democracia ou ditadura. E a avaliar pelo que se passa nesta Europa, o primeiro arrisca-se a ser trocado por um mais moderno, mais chique e mais na moda.

1 A última manifestação convocada pela CGTP parecia uma procissão, com andor e ladainhas e menos fulgor que as rezas de um velório.

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publicado às 19:12

Dias de mães

por Sofia Loureiro dos Santos, em 05.05.24

Kaar-Upson_mother's legs.jpg

Kaari Upson

Mother's legs

 

Muitos, todos, nos sonhos e nas velas, no trabalho e no descanso, nas brincadeiras e nos ralhetes, momentos de enorme e profunda felicidade, momentos de abismal e eterna tristeza e solidão.

Mães uns dos outros, a quem sabemos um colo ou uma farpa quando precisamos, em grupos misturados de tecnologia e abraços, de palavras, de sentimentos.

Para todas as mães e pais, que dividem esta condição ampliando-a, que se multiplicam em múltiplos deles próprios para o serem, para o aprenderem, para a incontornável e incomensurável tarefa de ajudar a criar alguém, que saboreiem este como os outros dias que foram e que serão seus.

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publicado às 12:00

Família(s)

por Sofia Loureiro dos Santos, em 14.04.24

Isabel miramontes.jpg

Isabel Miramontes

Abraçar alguém, homem ou mulher ou qualquer dos géneros alternativos, grande, pequeno, escuro, claro ou às cores, de qualquer nacionalidade, ter alguém que amamos, alguém que beijamos infinitamente.

Ter momentos em que nos juntamos, rimos ou sofremos, apoiamos ou discutimos, de felicidade, raiva, estremecimento ou distanciamento, ter alguém de pequenino que nos olha e apreende, que nos cheira, com o corpinho morno junto ao nosso, que nos dilata e preenche o coração, que nos inunda de ondas de amor.

O amor, sempre o amor. Amar alguém é a nossa mais preciosa característica, e não a temos que justificar a ninguém.

Família é a que temos, biológica ou não, constituída por aqueles que escolhemos, sejam quem forem, de onde forem, como forem, estejam aonde estiverem, melhor bem junto a nós.

E ninguém tem absolutamente nada a ver com isso.

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publicado às 10:52

O ar dos tempos

por Sofia Loureiro dos Santos, em 13.04.24

Womens-Rights-Pioneers-Monument_Meredith-Bergmann_

Women’s Rights Pioneers Monument

Meredith Bergmann

 

É pesado.

Vamos assistindo àquilo que considerávamos valores universais, de civilização, civismo, direitos, liberdade e garantias, no sei de um mundo que se ia desenvolvendo.

Mas não. Nos EUA, preparam-se novas proibições às leis do aborto. Por toda a Europa, o revivalismo, o reaccionarismo e a forma despudorada com que se tem ouvido cada vez mais gente a defender o retrocesso a ideias ultramontanas, sendo muito difícil fazer frente a essa situação.

Não é o facto de as poderem defender que está em causa. A democracia é isso mesmo. Mas a descoberta de que há tantos a defenderem estatutos de dona de casa, a sensibilidade maior da mulher, papéis distintos para homens e mulheres reescrevendo tudo o que se passou nos últimos 100 anos, já não digo 50 anos, a lavagem cerebral quanto ao que apelidam ideologia de género, a obrigatoriedade de seguir padrões comportamentais e ideológicos, a negação da pluralidade de soluções e de vontades de afectos, é assustadora.

Por outro lado, ao fim de 2 dias de discussão do programa do governo, descobrimos que a promessa da redução do IRS feita pela AD era, pura e simplesmente, mentira, descarada e saloia, é deprimente.

São ares dos tempos.

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publicado às 12:06

Au Revoir Les Enfants

Adeus Rapazes

por Sofia Loureiro dos Santos, em 17.03.24

A propósito do livro Village of Secrets que aqui referi, vi anteontem um filme - Au Revoir Les Enfants, de Louis Malle, que apenas conhecia de nome. É um filme de 1987 que recebeu, em 1988, 7 prémios César: melhor filme, melhor realização, melhor cenário original ou adaptado, melhor fotografia, melhor decoração, melhor som e melhor montagem.

O filme é baseado numa história verídica vivida pelo próprio Louis Malle. De uma simplicidade espantosa, sóbrio, silencioso, comovente, mostra mais um exemplo de como as comunidades religiosas, desta vez uma cristã, contribuíram para esconder e salvar crianças e adultos judeus, na França ocupada e colaboracionista.

O mais interessante do filme é o facto de não haver bons nem maus. Todos os personagens têm cambiantes e, por isso mesmo, faz-nos pensar na nossa própria ética, nos nossos próprios valores e de como estes podem ser postos à prova e serem, por nós, esquecidos.

Todos somos humanos, mas há heróis de todos os dias, que não precisam de caixas de ressonância nem de espelhos de aumentar. Porque são, eles mesmos, uma versão melhorada das nossas inquietudes e preocupações.

Num dia de trabalho intenso, como todos, em que as actividades domésticas na minha ausência também foram exuberantes, um jantarzinho a dois, numa bela cervejaria, seguida de uma noite de cinema.

A felicidade das pequenas coisas.

À la Clair Fontaine

Schubert

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publicado às 15:50

Pequeno espelho da sociedade

por Sofia Loureiro dos Santos, em 25.02.24

A publicidade é um espelho da evolução da sociedade. Pode ser muito interessante e inspiradora, inócua ou, simplesmente, abjecta.

Na última categoria considero o anúncio aos Cheetos, que passa inúmeras vezes na TV, e que apela ao egoísmo, à falta de sentimento de inter-ajuda e generosidade. É mesmo revoltante. Não percebo bem o que a campanha quer, se calhar é só tonta e incompetente, mas mostra muita coisa indecente.

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publicado às 13:32

Village of Secrets

por Sofia Loureiro dos Santos, em 17.02.24

village of secrets.jpg

Muitas vezes me questiono sobre os valores morais, a decência, a mudança dos mesmos e das suas definições ao longo dos séculos, o que é aceitável em 1500, 1900, 1940 ou 2024, de como, no século XXI, tantos comportamentos assustadores e inimagináveis começam a reaparecer. Como foram possíveis, no último século, e como estão eles a renascer?

A relatividade com que, hoje, se fala dos direitos, liberdades e garantias, a falta de sobressalto quando se ouvem líderes políticos defenderem atitudes, comportamentos, leis, que há uns anos nos pareceriam dignos de gente louca, terrorista ou criminosa, mostra bem que somos os mesmos, a mesma massa humana, e que tantos séculos de evolução pouco mudaram a nossa mente.

Mas na verdade, as pulsões da intolerância, da xenofobia e do racismo mantêm-se, por vezes mais abertas por vezes mais escondidas. O que permitiu às sociedades ocidentais fenómenos ditatoriais e de escravização das minorias, dos diferentes, a forma como rapidamente o anti-semitismo cresce e se espalha, como gente comum se torna em gente mesquinha, medrosa, criminosa (a tal banalidade do mal), é aquilo a que vamos assistindo, ciclicamente, ao longo da História.

Porque os sentimentos humanos, a generosidade e a solidariedade, o respeito pelo outro, a empatia e a compaixão, a certeza de que há atitudes, pensamentos e valores que são certos e que devem ser defendidos a todo o custo, mostram-nos que somos amálgamas imperfeitas mas que há sempre aqueles que são justos, mesmo com risco da própria vida.

O livro Village of Secrets - Defying the Nazis in Vichy France, é a história de muitos heróis simples e discretos, gente que, mesmo com as dificuldades da ocupação, com a fome e o roubo a que permanentemente estavam sujeitos pelos ocupantes alemães, aqueles que se negaram a colaborar com a regime de Vichy, numa comuna francesa junto à fronteira com a Suíça (Le Chambon-sur-Lignon), fizeram das suas casa, quintas, hotéis, cafés, escolas, caves, dos seus amigos, conhecidos, familiares, um exército civil de resistência, de esconderijos e refúgio para judeus, criação de identidades falsas e arquivos de nomes verdadeiros de crianças, juntamente com impressões digitais, para que, na esperança de um fim mais feliz, fosse possível aos milhares de martirizados que ajudavam, recuperarem o mínimo da sua identidade familiar e cultural.

Não nos enganemos. Podemos ser os libertadores e os algozes. Aquilo a que vamos assistindo pelo mundo, à destruição da decência, a criação de verdades e de factos alternativos, o desatar dos nossos mais baixos instintos, auguram o regresso da escuridão. Felizmente há sempre alguma luz. Que não a percamos de vista.

Plaque_commémorative_du_sauvetage_des_juifs_au_Ch

 

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publicado às 16:13


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