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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Oh Povo bom Povo
Tanto de ti se fala
Tão pouco por ti se faz
Tanto que o povo cala
Tanto que o silêncio trás
Oh Povo triste Povo
Tanto que de ti se pede
Tão pouco que a ti se dá
Vinho que não mata a sede
Os sonhos do que não há
Oh Povo grande Povo
Tão pouco de tanto guardas
Tanto do muito que perdes
Tanto em ser feliz tardas
Do tanto de ti que rendes
Barcos - Júlio Pomar
No fim de um lugar que desconhecemos
uma porta que se abre devagar
nuvens de pó branco como veneno
glórias desfeitas passados que repisamos
um fluido esquecimento de tudo o que doemos.
Roufenha a voz que repete o fado
guitarras de pobreza aves sem destino
numa praia de arvoredos crivados de gaivotas.
Tiros de versos e azedume nas manhãs de brilho e nevoeiro
a porta que se fecha sem que vislumbremos
o futuro a que julgámos pertencer.
Outros serão os ventos outros os lugares de encanto
sempre nos gestos esta mansa loucura este canto
de flores e de mar de tempestades de navios e terra.
Esta soma de gente multiplicada por melancolia
este cheiro esta luz e o morno passarinhar da poesia.
Camões por Fernão Gomes
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Trago dentro de mim a nau simbólica
Flor de la Mar: navegação do espírito
Nau Nação. Aquela que se fez para fora
e se perdeu para dentro. Sou essa Nau
Memória. Talvez perdida. Talvez esquecida.
Sou essa viagem de circum-navegação
à volta do Mundo e de mim mesmo.
Nau Ideia. Sem ela nós não somos nada
não mais que um bairro perdido a Ocidente
com ela se navega mesmo se parada
só com ela se pode chegar ainda
ao que dentro de nós é sempre ausente.
Nação que foi Europa antes de Europa o ser
Flor de la Mar: quatro sílabas com que se diz
o nome do poema
e do país.
Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos.
a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação do indivíduo dentro de si mesmo. O bom português é várias pessoas.
b) a predominância da emoção sobre a paixão. Somos ternos e pouco intensos, ao contrário dos espanhóis — nossos absolutos contrários — que são apaixonados e frios.
Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim — Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver.
O discurso de João Miguel Tavares, mesmo antes de ter sido proferido, já tinha vários detractores, apenas porque era dele, João Miguel Tavares, comentador encartado do Governo Sombra e opinante do Público, que cresceu e se diferenciou à custa de gritar contra José Sócrates.
Não tenho qualquer simpatia pela figura e discordo de quase tudo o que ele diz. Por outro lado, não tenho Marcelo Rebelo de Sousa na conta de tonto, pelo que a escolha de João Miguel Tavares para organizar as cerimónias comemorativas do Dia de Portugal me mereceu, pelo menos, o benefício da dúvida. E li com atenção o discurso que ontem fez.
João Miguel Tavares aponta ao país aquilo que a geração dele pensa do mesmo. O desencanto, a desilusão, a falta de perspectivas de futuro, pelo menos a sua incerteza, a crescente desigualdade de oportunidades, o fosso entre o interior pobre e o litoral rico, a perpetuação das chamadas elites, o divórcio com a política.
Todos os problemas existem e são importantes. O problema de João Miguel Tavares, como de muitos outros, é a repetição do mantra nós e eles, significando nós - o povo, por inerência bom, honesto e ingénuo, eles - os políticos, por inerência pérfidos, incompetentes, desonestos e ladrões.
A responsabilidade do estado do país é nossa, de todos. Os políticos são pessoas iguais a nós, uns melhores outros piores, que nós próprios escolhemos, por acção e, cada vez mais frequentemente, por omissão. O que gostaria de ter ouvido a João Miguel Tavares não era pedir aos políticos que nos dessem alguma coisa em que acreditar, mas o repto à sua e às gerações mais jovens para participarem na vida pública, que é um dever, para votarem, para se manifestarem, para contribuírem e fazerem política, que é responsabilidade de todos. Critico, por isso, e nesse sentido, o seu discurso, populista no apelo do nós contra eles.
Mas as reacções que fui lendo ao longo do dia por pessoas que se concebem de esquerda, que não se cansam de apregoar valores de igualdade, tolerância, respeito pelas diferenças e pela liberdade de expressão de pensamento, acabam por adubar e fazer crescer os populismos, arrasando qualquer opinião que, mesmo que remotamente, ponha em causa os seus dogmas. É precisamente esse arregimentar de tropas, esse encurralar de facções, que muito contribui para o aumento do cansaço e da exaustão perante o exagero e o tremendismo, e que afasta as pessoas da intervenção pública e do activismo político. Não há qualquer interesse em ouvir e tentar entender, mas sim arrasar um lado, independentemente do gradiente do outro. Ao reduzir todos à mesma substância, emparceira-se João Miguel Tavares com André Ventura. A sanha é a mesma.
João Miguel Tavares foi populista mas não só, e o seu carisma aumenta na proporção inversa do desprezo a que é votado pelas patrulhas de esquerda que, de tão limpas e puras no seu esquerdismo, chegam a ser tão demagógicas quanto ele.
(...) O que nos caracteriza geneticamente é que temos uma mistura notável de genes com as mais variadas origens. E se pudesse identificar uma característica quase única entre nós era essa mistura genética (...)
(...) Temos de ser exemplares, de cima para baixo, na organização social e na selecção das lideranças, o privilégio tem de ser acompanhado de responsabilidade (...)
10 de Junho de 2015
Vemos desfilar as figuras
numa pompa de bonecos articulados
as marcas no chão
desenhos de um encenador empalhado
passadeiras e banda de música
enfáticos soldados de chumbo
neste País apalhaçado
no entretém de vizinhas à janela.
E a voz de pároco do burgo
redonda e ciciada como convém
a soar pelos ares de entulho
numa bênção colada a ninguém
meu País triste e alheado
da irrelevância das almas sem orgulho.
A deriva populista e demagógica varre toda a sociedade portuguesa. A onda de ódio antipolítica e antipolíticos é um sintoma de falta de cultura democrática tão evidente como a preocupação em censurar imagens ou em calar manifestantes.
Já tenho aqui dito mais de uma vez que me incomoda que haja grupos de agitação permanente à espera dos representantes políticos para os apuparem, insultarem, acusarem. Aqueles que agora compreendem o povo que se manifesta contra Cavaco Silva, ministros, deputados, autarcas, não terão a mesma tolerância quando essas manifestações forem contra eles. Passou-se com Sócrates, com Maria de Lurdes Rodrigues, com Crato, com Relvas, com Correia de Campos, com Paulo Macedo e passar-se-á com qualquer um que ocupe funções no Estado.
Confunde-se liberdade de expressão com insultos e gritaria, com enxovalho e humilhação. É como os comentários aos posts e as graçolas nas redes sociais. Uma tristeza, de facto.
Cavaco Silva deve ser combatido politicamente, e respeitado como Presidente eleito, tal como todos os outros representantes políticos, pois todos são a emanação do voto popular e têm mandato para exercerem o poder. Entendo mas não aprovo a guerrilha de tipo sindical associado ao PCP, ou de esquerda ampla associado ao BE, que irrompe por salas de reunião, conferências e comemorações oficiais, confundido gritaria com opinião maioritária, esquecendo-se que as manifestações não têm legitimidade eleitoral, por muito importantes que o sejam.
Talvez eu tenha uma raíz muito deferente ou muito retrógrada, ou ambas. Mas custa-me muito que, em nome da liberdade de expressão e da democracia, se achincalhe uma figura que nos representa a todos.
Quanto ao tipo de comemorações do dia 10 de Junho - ouço e vejo muita gente a insurgir-se contra o tédio e o piroso destas comemorações. No entanto, as populações estão presentes e gostam. Suspeito que, no dia em que muitos desses detractores fossem condecorados, estas festas passariam a ser sofisticadas e a constituirem um insubstituível acto de cultura.
Almada Negreiros
Partida de Emigrantes
O meu país divide-se em sílabas
- por - ele tudo de nada acontece. Afunda-se
encolhe-se enruga-se esvazia-se em gente
mole e arrastada – tu - e eu manchamos a terra.
O meu país divide-nos e abre
os rios por onde se espalha e cresce
em múltiplas sílabas de dor – gal - de fim
afinal
Portugal.
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