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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Falta-nos um dilúvio, Senhor Deus, um dilúvio de palavras e de estrelas que nos acalentem e nos guiem. Faltam-nos cajados de serpentes e ramos de oliveira para remarmos na água turbulenta dos anseios, mergulhados nos corpos, nas mágoas, nos filhos, nas mulheres, nos homens, em todas as coisas vivas ou mortas com que nos brindas diariamente, pelos infinitos que não conhecemos com os finitos que nos impões, por capricho ou por castigo.
Faltam-nos os gestos, Senhor Deus, com que oferecemos os frutos da razão, entrincheirados nos ruídos do mundo, nas mais diversas necessidades desnecessárias a que nos obrigamos e acrescentamos, entulhando as almas de detritos e tédios supérfluos.
Falta-nos a terra, a chuva, a luz do pão da partilha, dentro dos círculos que traçamos para a quietude da revolta, para a tranquilidade das tempestades com que ciclicamente nos dilaceramos. Faltam-nos árvores e fios de prumo, as geometrias de um universo que vamos trilhando, horizontes desconhecidos de mãos, de olhos, do fogo lento no amor que nos negamos.
Sobram-nos espaços de solidão em que o silêncio rasga os leitos e as janelas de tantos outonos cobertos da cinza do abandono, rugas que cavam o tempo, caminhos que se encurtam de medo, de luto, de esquecimento.
E no entanto, Senhor Deus, cada olhar que retenho, cada abraço que aconchego, a cada voz que se eleva em miraculosos sons irrepetíveis, a cada mundo que habito apenas porque me dou, me dispo, me sonho, a cada verso que escrevo, vou percebendo que a enorme e misteriosa arte de te saber ausente e presente, não é mais que o holograma do meu pensamento, tão divino e inconcebível como o mais humano dos seres.
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