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Imaterial

por Sofia Loureiro dos Santos, em 09.09.24

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1.

Não sei para onde me dirigir. Para cima? Para o lado? Para a terra? Nunca irei outra vez ao jardim das gavetas de pedra, porque não é lá que tu estás, só o teu envelope.

Mas então para onde? Era tão mais fácil acreditar que, nalguma etérea dimensão, continuas e me ouves, e te ris de mim, e me aconchegas com o olhar, e que me recebes com a delicadeza das atenções que te envergonhas de assumir, mas que adoras que eu reconheça e tu diga.

Como explico que, antes, gostava de ir até ao rio sozinha, beber café, cirandar, ler o jornal, beber o ar, e agora me faltam as pernas, os olhos, a alma, o interesse, o ânimo? Como explicar o meu anterior gosto pelo isolamento, a minha economia de palavras, que acompanhavas e respeitavas, que agora se transformou numa prisão de letras, sons, significados, de tal forma que se avolumam em mim, não conseguindo impedir o transborde da tristeza? Como posso explicar que não consigo deixar de fechar a porta, já que não estás do outro lado para trocarmos impressões, cada um no seu canto, mas transmitindo opiniões e carinho entre paredes?

Hoje marquei na agenda vários concertos, para que a música me consiga preencher este vazio. Comprei até os bilhetes, muito arrumadinhos na pasta para isso criada no meu computador. Mas depois a quem conto o que ouvi, o que vi, o que senti? Com quem falo dos compositores, das orquestras, dos intérpretes?

Assim não. Assim não. Assim não.

 

2.

Dizem-me que devo chorar sem limites, nem pena, nem pejo, mas se choro lembram-me da força que é suposto ter, da inquestionável fortaleza da minha alma.

Dizem-me que tenho de superar, quando nem ideia fazem do que há para ultrapassar, ou sequer se o quero fazer.

Dizem-me para sair, para me distrair, quando nem desconfiam da revolta que sinto por a vida continuar sem que estejas comigo, quando não percebem que nada me pode distrair.

Dizem-me que tenho de viajar, para longe, para muito longe, quando não entendem que as viagens eram nossas, tu e eu, pelos caminhos de tantos mundos, imaginados ou calcorreados, abraçados ou detestados, tantos livros, tantos sonhos, tudo o que me interessava na vida.

E eu encolho no meio de tanta boa-vontade, no meio da culpa de ensurdecer a tantas sugestões, fechando portas, olhos, luzes, e ficando à espera de que, finalmente, resolvas regressar.

 

3.

Pela casa espalham-se pedaços de uma existência que já foi. Que vazias as roupas, transformadas em trapos sem préstimo nem brilho. Que velhos os livros, repentinamente amarelecidos e quebradiços, as folhas soltas, as letras desvanecidas.

Olho para estes restos que nada são, sem som nem cheiro, e não consigo tocar-lhes, dar-lhes destino. Pela casa estão espalhados fragmentos de uma memória que teimo em querer manter em matéria, quando tudo se tornou imaterial.

 

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publicado às 21:21


3 comentários

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De Um Jeito Manso a 09.09.2024 às 21:56

Não sei se leu o livro de Julian Barnes, creio que se chama 'Os níveis da vida', em que, numa das partes, ele fala da perda da mulher e da dificuldade dos outros em compreenderem o vazio que ficou na sua vida.
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De Sofia Loureiro dos Santos a 09.09.2024 às 22:11

Por acaso gosto bastante de Julian Barnes e já li vários livros dele. Mas esse não. Irei ler.
Obrigada
Sem imagem de perfil

De David a 11.09.2024 às 14:11

*Luta*

Luta, luta, luta
Faz o luto pelo luta
Faz a luta pelo luto

Não deixes de crer
Que o luto 
É o lugar devoluto 
Onde a dor dissoluta
Não pode vencer

Porque só quem luta 
Sabe que o Luto  
É via absoluta
Para voltar a viver!

David Lito, 11/9/2024

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