Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]

Este confinamento, que a todos põe os nervos em franja, tem sido fértil em pequenos acidentes e desastres que parecem insolúveis, ou muito mais difíceis de resolver quando apenas podemos usar o computador.
Vem este desabafo a propósito de uma irritação doméstica que me acometeu, há uns dias, e que me levou a constatar que coisas muito pouco importantes têm o condão de nos deixar al borde de un ataque de nervios*.
A mobília do meu quarto (cama, mesas de cabeceira, cómoda e roupeiro) foi a primeira coisa que comprámos para a nossa casa, antes de nos casarmos. Daquelas rústicas, de madeira, grande, pesada e fidedigna, uma metáfora para o que se esperava do próprio casamento. Foi comprada na Rebordosa, depois de uns dias de visitas a várias casas (de fábricas) de móveis com uma prima muito querida que nos acompanhou e ajudou nesses primeiros passos pré casório.
Mas a verdade é que já passaram vários (muitos, mais precisamente 32, quase 33) anos. E a mobília começa a dar conta do seu (e nosso) envelhecimento. E a cama primeiro rangia horrorosamente: descobrimos que era do estrado, que foi substituído. Depois foi-se abaixo de uma das pernas, tendo-se partido o encaixe de uma das tábuas (nessa altura éramos ambos bastante elegantes). Um vizinho velhote mas que sabia arranjar tudo tirou-nos do aperto. Depois tivemos que trocar de colchão, o que resultou numa escalada diária ao Everest, visto que não me lembrei de medir a altura do dito. Desde então sou fã de banquinhos que ajudam a chegar mais alto, o que muito me mortifica porque é bastas vezes aproveitado para as torturas diárias do treino (agora que é feito em casa tudo serve para me fazer sofrer).
Há quase um ano, em pleno confinamento e a meio de obras de remodelação, foi-se abaixo de outra das pernas, tendo dado azo a um episódio de rir até às lágrimas, quando recuperei do susto de ter visto o meu querido esposo a desaparecer pela cama, fazendo saltar o tabuleiro com o pequeno almoço que eu, extremosa esposa, tinha trazido para a manhã de sábado (ou domingo, já não me lembro). Dessa vez fomos salvos pelo carpinteiro que tinha arranjado a estante do meu escritório, em perigo por suster tanto livro. Felizmente foi muito simpático e disponível e resolveu o assunto em três tempos.
Mas há umas semanas, depois de várias ameaças perceptíveis apenas para os ouvidos mais receosos (eu), com alguns sons de protesto quando nos virávamos mais bruscamente, resolveu partir-se de novo. Desta vez estávamos atentos e não fomos apanhados de surpresa. Mas a cama deixou de o ser para passar a tripé periclitante.
A solução gritava – tínhamos de trocar a cama. Só que com todas as lojas de móveis e decoração encerradas, o objectivo não era fácil de atingir. Resolvemos optar por um sommier (confesso que só agora percebi o que era). Mas qual, com que altura, se sem pés se com pés, baixos ou altos, foi todo um emaranhar de decisões difíceis e cheias de armadilhas, pois uma coisa é apreciar ao vivo outra muito diferente é ver fotografias no ecrã dos computadores.
Outra novela foi a entrega e a montagem. Sim, porque arriscarmo-nos a montar uma cama depois do fraquejo dos pés da outra, nem pensar.
Resumindo e concluindo: tivemos que dormir uns dias com o colchão em cima do estrado directamente no chão, o que me obrigou a treinos suplementares de sentar e levantar (com a barriga encolhida e as omoplatas juntas) sempre que pretendia levantar-me da cama. Andava deprimida, confesso.
No dia em que chegou a encomenda fiquei aterrada porque as embalagens não pareciam corresponder ao sommier (com estrado e pés) que vira no site onde o tinha comprado. Concluí de imediato que me tinha enganado na encomenda, o que me deixou ainda mais deprimida. Mas afinal não, tudo estava certo. No dia seguinte a eficaz montagem devolveu-nos a dormida a uma altura muito mais simpática e confortável.
O problema é que agora temos de pensar numa cabeceira, ou em almofadas, ou em travesseiros com fronhas etc., e nada disso é fácil de encontrar online. Enfim, uma enorme trabalheira por tão corriqueiro acidente.
*do título de um filme de Pedro Amodóvar
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.
