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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Katarina Macurova
Confesso que quase todos os dias me apetece escrever qualquer coisa a propósito do que se vai passando. Mas a minha incapacidade para explicar o que me vai na alma, a impaciência e incompreensão para cada um do factos que considero totalmente superficiais e absolutamente irrelevantes para aquilo que as pessoas comuns pensam, precisam e pedem, faz com que me abstenha de escrever seja o que for.
E na verdade não tenho nada de importante a dizer. O que poderei comentar quanto à perigosa deriva totalitária dos bem pensantes das causas fracturantes e de esquerda, das minorias que, de tanto terem sido discriminadas, se acreditam com direito à prática de bullying sobre toda e qualquer incauta pessoa que não se acautele em relação à correcção da linguagem, para que não seja violentamente insultada nessa maravilhosa nova ordem social que se chama facebook?
A nova humanidade não terá sexo, não terá cor nem cheiro, não será gordo nem magro, não se alimentará de seres vivos, animais ou vegetais. Haverá os polícias da linguagem, da alimentação, do racismo, do sexismo e de outros ismos. As crianças não se rirão do ridículo, não serão preconceituosas, não marginalizarão os que sentem como diferentes, nascerão já com a correcção comportamental e social que hoje se constrói, nesta sociedade de seres limpos, saudáveis, igualitários, amadores de todas as coisas e pessoas, humanas e não humanas, respeitarão a vida e comerão as pedras, reduzindo extraordinariamente a sua pegada ecológica.
E eu que sou tão imperfeita, que gosto de comer e de beber, que passo a vida a controlar o peso e a maldizer o destino, que me queixo, que gosto de observar as feições das diferentes etnias, de apreciar as diferenças entre os sexos, que aprendi, como jovem mãe cheia de ideias feitas, que as meninas são diferentes dos meninos, independentemente da educação que se lhes dá (é uma questão de cromossomas e de hormonas, para além da educação), que não aprendi a nova linguagem asséptica do género, que não suporto o reescrever da História, a alteração das obras de arte, a dulcificação idiota das histórias infantis, a substituição do cigarro do Lucky Luke, a proibição de Huckleberry Finn ou do Tintin;
eu que fico estupefacta por ver um Ministro da Defesa precipitando-se com receio das redes sociais e das intrigas que nos avassalam o quotidiano, a assistir às demissões de membros do governo motivadas e explicadas no facebook;
eu que tento sobreviver aos anos, às intempéries da vontade, às desistências e às incredulidades, cada vez mais retrógrada, mais reaccionária, mais ultrapassada;
sinto-me completamente impossibilitada de me mexer, de falar, de me manifestar perante os mais acérrimos defensores das liberdades de expressão e do direito a ser-se quem se é. Até porque me falta o arcaboiço para resistir aos inevitáveis comentários venenosos, insultuosos, grosseiros e etc. que inevitavelmente me dirigirão, tal como os que vou lendo contra quem se atreve a por em causa esta nova e revolucionária forma de existir.
Admirável mundo novo, não te pertenço.
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