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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Jochen Hein: see II
Levantamos o corpo numa penitência diária
de quem ignora ao que regressa
não sabemos parar este irremediável aperto
do tempo esta camisa de ferro a que nos comprometemos
obrigações que só a nós amarrámos mas
que outros sentem secretamente.
Levantamos os olhos da terra para onde
queremos mergulhar mítico lugar de alimento
e paz onde o deserto das casas e das ruas não assusta
mas comove. Recolhemos a vontade aonde ela já não existe
reinventamos em cada segundo a energia que move
músculos e engole a funda tristeza da desesperança.
Até quando.
Convidei para o jantar... um poema
Havia rumor de passos de vozes ranger de tábuas
entre as rosas mistura de cheiros acres e baunilha.
Havia olhares prolongados de privações
anos de chão raspado por joelhos macerados.
Havia mãos diligentes que batiam ovos
zelosamente guardados em quartos de verão.
Infâncias de memórias casas de ventos
onde se depositam amenas tardes de feno.
Suspiro com leite-creme de beterraba e chocolate
O suspiro:
Batem-se 8 claras com uma pitada de sal em castelo bem firme, e juntam-se 400g de açúcar batendo sempre, durante mais um pouco, até ficar um creme branco e espesso. Espalha-se num tabuleiro e leva-se ao forno lento até cozer.
O leite-creme de beterraba e chocolate:
Cozem-se 200g de beterraba descascada e aos bocados em água, com raspa de 1 limão e de 1/2 laranja e 1 vagem de baunilha (aberta, raspada e cortada aos pedaços); depois de cozida escorre-se, retira-se a vagem da baunilha e reduz-se a puré (com a varinha mágica) juntamente com 1/2l de leite que, entretanto, ferveu com outra vagem de baunilha e 200g de chocolate preto (de culinária), cortado aos bocadinhos para ir derretendo. À parte misturam-se 8 gemas com 300g de açúcar, 2 colheres de sopa rasas de farinha e, a pouco e pouco, o restante 1/2 litro de leite. Côa-se o leite com a beterraba e leva-se ao lume, juntando com cuidado a restante mistura do leite, ovos, açúcar, farinha e leite. Deixa-se no lume até engrossar, torna-se a coar e está pronto.
Serve-se o suspiro banhado em leite-creme de beterraba e chocolate.
Esta é uma homenagem à minha avó.
Wayne Chisnall
1.
Sei que tenho memórias de um tempo feliz
daquelas memórias que servem para aconchegar os rigores da passagem
da vida. Sei que existem nalgum recanto do cérebro trancadas
em portas invisíveis. Mas não as encontro
essas memórias de tempos idos em infâncias despreocupadas e seguras.
2.
Impossível este amor sem vício nem dor
este diário sem carne amarrotada e madrugadas insones.
Impossível este amor de liberdades aprisionadas
pelo hábito e pela culpa. Impossível querer sem ter
a cruel lucidez da incerteza e mesmo assim amar
sem pejo nem lonjura sem o tempo que perdura em nós.
Salt painting
Dana Jo Cooley
Um dia de punhos apertados. No teu peito
a irmandade dos povos desabridos desastre
exato e metódico como manto de fado milenar.
Habita-nos um pequeno monstro cinzento
que olha e ri das faces demolhadas em banhos de sal.
Ressequidos os montes e cumes de burburinho ocupado
de tantas mãos vazias. Um dia a menos
que a falta do teu peito faz a vida inútil e comprida.
To Every End There is a Beginning
Rich Frederick
Neste pequeno centro de evasão a que chamo casa
o mundo suspenso entre a raiz do sol
e o bater de uma asa
apenas a música de flores embala
a certeza da realidade que me espera.
David Freedman
Vou secando as flores
drenando a água em que mergulho
a felicidade momentânea.
Gasto a alma absorvo dilúvios
e reduzo a pó a grandeza que antecipo.
A solidão ecoa e infiltra todos
os poros da vida arestas que magoam.
Só o inatingível me parece certo
na prisão do encantamento.
Por pudor ou medo não quero
precisar tanto de amor.
Stefano di Giovanni
Quero dar ao meu amor
um fio do meu cabelo
ternura branca de dor
rugas fundas em novelo.
Minha alma estendida
umas mãos cheias de nada
o resto da minha vida
a seu lado ancorada.
A doçura da romã
quero dar ao meu amado
o respirar da manhã
rumor do campo acordado.
Quando chegar o Natal
com a penúria enfeitada
em poeira de cristal
serei a noite encantada.
E enquanto o tempo quiser
serão meus braços seu manto
sempre que o céu mantiver
o tom cinzento de pranto.
E enquanto o tempo poisar
no ombro do nosso amor
nos dias que irão faltar
o mundo será melhor.
Bonsai
Nem sempre sabemos distinguir as nítidas
superfícies a transparência das luzes o brilho
inamovível da memória. Nestas árduas fadigas
de hoje recuperamos a necessidade de sentir
na simples limpeza do olhar a oferta o conforto
do silêncio.
Pistoletto:
Mirrors
Gosto das imagens sem sons em que a mímica
dos rostos me prende e suspende.
Entendo melhor o brilho dos olhos a rugosidade
da pele o tremor das pálpebras,
antecipo a lava destruidora o gelo
das mãos caídas, estremeço nos braços abertos
de alguém que não me vê,
misturo as minhas com as lágrimas do espelho,
devolvo a névoa e o calor em novelo.
Sherrie Rennie:
Inner-city Bred
1.
Nada me aquece neste muro construído
por minhas e outras mãos. Ouço vozes solitárias
de um fado torturado e infinito. Cada vez mais fria a ausência
do teu abraço. Ao meu lado o silêncio esfíngico
de alguém que desiste. Que sem querer mergulha na guitarra
e dedilha a dor permanente da realidade.
2.
Nego o passo para o monótono aviso da destruição
nego a inevitável avalanche da tristeza
uma apatia tão sem nexo nem solução
que nega o lampejo e a atração
pelo apetecível abismo.
3.
À minha volta a poeira desmaiada da cidade
sem ruas visíveis nem faróis fugazes.
Procuro algumas velas iguais à tremeluzente
incerteza que nos habita na usual capacidade
de apagamento que antecede a idade
das cinzas.
4.
Parto aplicadamente o tijolo em que
transformo os velhos pedaços deste
tecido envelhecido que
enforma o todo que já
foi habitado por
mim.
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