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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Foi uma viagem envolta em neblina, mas uma neblina luminosa e despreocupada, aquela neblina dos ansiolíticos e dos antidepressivos.
Após um enfarte do miocárido, uma operação ortopédica medianamente sucedida, uma doença grave dos meus familiares mais próximos, e o síndroma de abstinência do tabaco, as drogas pareceram-me (e foram!) a melhor opção. Na preparação da viagem resolvi marcar o hotel pela internet, estudando o mapa da cidade, as localizações e os preços, e reservei aquilo que eu pensava ser um quarto duplo, naquilo que eu pensava ser um hotel, mesmo junto à Václavské náměstí (Praça Venceslau).
Chegámos de noite, após uma corrida num táxi de aspecto muito duvidoso, que nos indicou num inglês macarrónico mas muito simpático onde ficava o nosso hotel, apontando para uma rua escura e estreitíssima, perpendicular, de facto, à Václavské náměstí. Era um edifício normal, grande, mal iluminado, sem recepção, apenas com um homem que nos deu uma chave enorme, nos apontou o elevador e nos disse que ainda tínhamos que subir mais umas escadas. O nosso pessimismo aumentou, carregando com as malas por uma escada robusta e pedregosa, e nos deparámos com uma porta enorme e cheia de ferrolhos, que mais parecia um cofre-forte de um banco.
O quarto de hotel era um apartamento com uma sala, dois quartos, uma enorme casa de banho e uma kitchnet, que ficava no sótão não de um hotel, mas de um prédio normal. A casa de banho não tinha sabonetes, shampoo ou toalhas, apenas um enorme rolo de papel higiénico verde. A sala tinha dois divãs arrumados em paredes opostas, desfeitas, com a roupa da cama (e as toalhas) dobradas em cima dos colchões, uma televisão que não funcionava e um sofá esventrado. A kitchnet estava totalmente equipada, até com uma mini máquina de lavar louça. Os quartos apenas tinham divãs a servir de camas, sem as respectivas roupas.
Bem ditas drogas. Apesar de pesarosos e ligeiramente irritados, decidimos que não iríamos passar uma semana ali, que apenas dormiríamos a primeira noite, até porque já estava paga, e teríamos que pensar em como tomar banho sem sabonete (a vida de luxo que estamos habituados a viver). Tomámos posse do nosso quarto e saímos para a maravilhosa praça iluminada e enorme, assim me pareceu naquela noite, em busca de um hotel. Foi só atravessarmos a praça, pois havia muitos hotéis, todos caríssimos.
Entrámos no Hotel Jalta e reservámos, de imediato, um quarto a partir do dia seguinte. É um hotel de 1958, remodelado, extremamente confortável e que, a nós, nos pareceu paradisíaco. No dia seguinte, após um banho de água quente (o esquentador foi um pouco difícil de acender e estava na casa de banho), fomos tomar o pequeno-almoço a um café que estava mesmo ao lado. Pedimos aquilo que pensávamos ser uma sanduíche com fiambre e café com leite; apareceu-nos uma espécie de tosta mista com pepino e café com leite. Surrealista! De imediato, enquanto um fazia o chek-out do apartamento, outro fazia o chek-in no hotel. Atravessámos a praça e começámos a semana.
Praga é uma cidade lindíssima, com uma luz especial, chuvosa, em que as raparigas são bonitas e simpáticas, os homens (não tão bonitos) são amáveis, com imensa vontade de comunicar e de falar com os turistas. É uma cidade com muitos cafés, muitos túneis que nos guiam entre diferentes áreas da cidade, com praças cobertas de esplanadas, músicos pelas ruas, vendedores de bilhetes para o Teatro Negro em cada esquina, becos e a Karlův most (ponte Carlos), o relógio astronómico, as cervejas, a partilha de mesas nos cafés e restaurantes, a omnipresença do pepino, o museu Kafka, o bairro judeu, o castelo, a arquitectura dos prédios mais antigos, dos restaurantes, tudo é simples e sofisticado, respirando uma atmosfera de efervescência cultural, de liberdade. Passeámos por muitas livrarias e muito pouco encontrámos sobre a invasão soviética em 1968, e pouca vontade de se falar sobre isso. Parecia ainda uma mancha e um trauma difícil de se reabrir e de se expurgar.
Talvez tenha ficado a gostar ainda mais do livro e do filme A insustentável leveza do ser, que nos transporta para aquela Praga rebentando algemas, para as ter que suportar ainda mais dolorosamente. Passaram 40 anos da violação de Praga. Convém que ninguém se esqueça daquele socialismo e daquele poder autoritário que, de novo, está a levantar a cabeça, se é que alguma vez a baixou de vez. Putin, a invasão militar da Geórgia, o posso, quero e mando de Moscovo, estão a regressar. E o mais aflitivo é que, neste momento, não há EUA nem UE que se lhe oponham.
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