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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Sinto sempre uma desconfiança instintiva quando ouço falar de políticas de apoio à natalidade e à maternidade. Arrepio-me de cada vez que se enaltecem as qualidades das mulheres que cuidam dos seus rebentos, que quereriam estar em casa 6 meses, 8 meses, 12 meses, para amamentarem, para darem papas e banhos e para assistirem ao gatinhar, ao rir, ao andar dos seus rebentos.
Estranho a enorme quantidade de consultas a que têm que ir acompanhadas dos respectivos companheiros, quer eles queiram quer não, esperando horas infinitas para poderem ouvir os dois que o feto ainda na barriga da mãe tem que ter a companhia do pai, o amor, o apoio, enfim, toda aquela retórica que acompanha o amor e a educação primorosa que nos ensinam que é a correcta e única possível.
É claro que acho muitíssimo bem que quem quiser fique em casa a cuidar dos filhos. O que me parece é que, encapotada e subliminarmente, se vai fazendo de novo uma lavagem ao cérebro da sociedade ensinando às mulheres que a sua função primordial é procriar, amamentar e acompanhar os filhos, e que só o não fazem por razões económicas.
Se o tempo gozado em licença de maternidade fosse dividido entre o pai e a mãe, ambos teriam oportunidade de acompanhar os filhos e de prosseguirem as suas careiras profissionais. A coberto de um grande apoio social à família e à mulher, empurra-se de novo o género feminino para a sua função reprodutora, esquecendo que as mulheres são maioritárias no desemprego em geral e no desemprego de longa duração, em particular.
As políticas de apoio à natalidade deveriam ser igualitárias, com a existência de creches na proximidade dos locais de trabalho, horários em part-time, teletrabalho, tudo o que facilite a vida de quem tem filhos, mas em pé de igualdade para ambos os sexos. Em vez de se insistir para que os homens ajudem e acompanhem a gravidez das mulheres como uma obrigação, por vezes ridícula e sem justificação, olhando quem não o faz como um machista sem remédio, seria melhor que se insistisse na necessidade de os homens ficarem em casa metade da licença de parto, no acompanhamento dos filhos ao médico e aos infantários, na facilidade com que os podem alimentar, exactamente da mesma forma que as mães. E não condenar as mães que optam por dar biberão, que querem regressar ao trabalho rapidamente após o nascimento da criança, que também gostam de beber um copo com amigos ou colegas de trabalho ao fim da tarde, que adoram a sua independência económica, que não gostam de ficar em casa. Não são piores mães por isso.
E também se pode ter liberdade de escolher não ter filhos.
Depois da revolução da pílula, da conquista da independência económica e da realização profissional, a sociedade parece quer fazer sentir de novo que as mulheres têm uma obrigação imperiosa, da qual depende até a sobrevivência da espécie, de regressar a casa.
(Nota: este texto foi hoje publicado no Corta-fitas, respondendo a um amável convite do Pedro Correia. Espero que os corta-fiteiros não se desiludam. Obrigada.)
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