Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]



Fanatismo e intolerância

por Sofia Loureiro dos Santos, em 11.03.07
Em 1975, o 11 de Março foi o início do que se convencionou chamar o PREC, época de gente louca e transviada, que acreditava estar na posse da verdade, época de visionários generosos e, por isso mesmo, perigosos. Época de delírios, marchas, golpes e contra golpes, país rebocado por uma turba revolucionária adolescente e feliz, totalmente desgarrada da realidade, mas que talhou para sempre a nossa democracia.

Quando olhamos para esses anos, agora adultos, obesos e instalados na vida, neste país medianeiro e de faz de conta, cheio de contradições e devaneios, nem conseguimos acreditar no que aconteceu, tal como quando olhamos para poemas destemperados e dramáticos e não nos reconhecemos naqueles transportes de emoção.

Em Madrid, o 11 de Março de 2004 teve a cor dos fanatismos religiosos, outros detentores da verdade, preparados para matar e morrer em busca de um deus exigente e sanguinário, tão certos de atingir a felicidade como de se espalharem em mil bocados, na fusão de ferros, roupas, corpos e terra.

Apesar de diferentes há uma terrível comunhão neste tipo de acontecimentos: o assumir por alguns de uma verdade que consideram inabalável e incontestável, baseados em crenças e dogmas, religiosos ou políticos, impondo-a a todos os outros.

Sempre me arrepiaram os detentores da chave da vida, pois a chave que julgam ter apenas serve para fechar portas, caminhos, soluções.

Ao ouvir, no Diário Ateísta, um pequeno vídeo traduzido em brasileiro, defendendo que a Bíblia é repulsiva, dando exemplos com frases retiradas do livro, organizando-as numa lógica que o(s) autor(es) consideram arrasadora, fico verdadeiramente espantada com tal demonstração de fanatismo.

O que eu considero repulsivo é este tipo de análise de um livro, de um discurso, de um pensamento, de um acontecimento. Sem qualquer seriedade, pretende-se explicar situações de uma forma tão dogmática e disparatada, idêntica à que os fanáticos religiosos usam, em sentido contrário, interpretando frases e textos literalmente, retirando-os do contexto, para provarem autênticas barbaridades.

Uma coisa é ser-se ateu, outra muito diferente é ser-se fanaticamente anti-religioso e negar a importância social e cultural do fenómeno religioso e das suas manifestações artísticas. A intolerância e o fanatismo estão em toda a parte, não só do lado das religiões do Livro.


(Bíblia Ilustrada, João Ferreira Annes de Almeida; José Tolentino Mendonça e Ilda David; Assírio & Alvim, 2006)

Autoria e outros dados (tags, etc)

publicado às 18:43


8 comentários

Sem imagem de perfil

De João Vasco a 14.03.2007 às 14:40

Sofia:

A análise que é feita do vídeo é a mesma que o Vasco Pontes faz: «Quanto à bíblia, [...], acho mesmo que é um livro feio [...] aquelas sentenças de morte de mulheres e crianças estão todas lá, assim como os preceitos morais inaceitáveis. [...] como base de qualquer moral moderna é simplesmente horrível.»

Existe uma diferença, na verdade, o Vasco Pontes faz uma distinção maior entre antigo e novo testamento do que aquela que é feita no vídeo. Nesse aspecto a minha posição é intermédia: a diferença entre o tom dos testamentos é muito menor do que aquilo que muitos julgam - principalmente se considerarmos as epístolas e os actos dos apóstolos, onde afirmações acerca da inferioridade da mulher, ou homofóbicas, etc... estão explícitas e claras. No entanto, acho que existe realmente uma diferença.

De qualquer forma, no fundamental, o Vasco Pontes e o Vídeo fazem a mesma análise da Bíblia: é um livro feio. Eu partilho dessa análise, e não acho que isso signifique que sou fundamentalista.


PS- coloquei no DA um vídeo que responde a algumas objjecções que foram colocadas por leitores do blogue, nomeadamente a de "retirar frases do contexto".
Sem imagem de perfil

De Sofia Loureiro dos Santos a 13.03.2007 às 18:56

Vasco, não tem nada que se desculpar, aprecio todos os comentários, concorde ou não com eles. A Bíblia tem muitos tipos de histórias, algumas horrorosas, outras não. Tudo o que eu quero dizer é que o tipo de análise que se fez no vídeo a que me referi é tão fanático como são aqueles que querem cortar a mão que roubou ou vazar o olho que viu o que não devia.
Sem imagem de perfil

De Vasco Pontes a 13.03.2007 às 09:16

Olá Sofia,
...Por acaso, também não concordo com o tom panfletário que muitas vezes é veiculado por alguns autores do Diário Ateísta. Mas como com a(s) religião(ões), dou um desconto. E isso feito, acho que fazem algumas provocações úteis. Quanto à bíblia, com todo o respeito, acho mesmo que é um livro feio, nomeadamente no velho testamento, que só se salva como documento histórico. Sem fanatismos, mas aquelas sentenças de morte de mulheres e crianças estão todas lá, assim como os preceitos morais inaceitáveis.
Como documento antropológico é sem dúvida um livro extraordinário, como base de qualquer moral moderna é simplesmente horrível. No novo testamento já vejo diferenças, e grandes, mas então não digam que o velho e o novo testamentos são a mesma palavra de Deus. Aquilo são deuses diferentes, penso eu. Apesar de não gostar de nenhum (não gosto de deuses, ponto), prefiro o segundo ao primeiro.
Desculpa o registo inabitual
Beijos
Sem imagem de perfil

De Sofia Loureiro dos Santos a 12.03.2007 às 21:43

Lino: tenho até muitas dúvidas, em muitas coisas. Mas não percebo bem quais as certezas que diz que eu tenho e que refuta! Visto a esta distância, o PREC foi um tempo de loucura e delírio. Não é por acreditar mas por ler, ver, várias facetas, contadas e mostradas e escritas e documentadas por várias pessoas, protagonistas e observadores, nacionais e internacionais! A história do PREC, como a da guerra colonial, como a de outros episódios e outras épocas, será conhecida na exacta medida em que for dada a conhecer pelos que a viveram, como o Lino, por exemplo.
Sem imagem de perfil

De lino a 12.03.2007 às 21:17

Às vezes eu fico espantado com as certezas que tem, Sofia (e se fosse só a Sofia!). Se eu tenho 57 anos e andava entre os 25 e os 26, a Sofia andava entre os 13 e os 14, ou então o seu perfil não está correcto. Não acredite em tudo o que lhe contam, mesmo que seja alguém por quem é capaz de pôr as mãos no fogo. Eu não pretendo ter o monopólio da verdade - longe de mim que sou o mais ignorante de todos, mas que andei lá, isso andei. Dias e noites a fio. E nunca vi nem tive conhecimento de muitas coisas que p'raí se dizem. E, na altura, não era parvo e andava informado, o que não sucede agora, pois a idade não perdoa.
Sem imagem de perfil

De Sofia Loureiro dos Santos a 12.03.2007 às 16:29

Lino: quando me referi aos adolescentes visionários e perigosos quis referir-me a todos os que, na altura, participaram na vida política. A adolescência como metáfora de algo que muda, que é radical. Não foi minha intenção depreciar ninguém, particularizar ou insultar. Muito pelo contrário, a democracia ultrapassou todos os ritos de passagem. Mas sabe bem que uma minoria visionária rebocava um país mais ou menos perplexo. E que isso foi perigoso, tal como perigosa é toda a experimentação e generosidade dos adolescentes. Penso que todos os personagens tiveram o seu papel, desde os mais fanáticos aos moderados que, felizmente e como é natural prevaleceram, assim como a democracia prevaleceu.

Bruce Losé: o Diário Ateísta tem textos muito interessantes, assim como outros menos interessantes. Mas aquele post deixou-me espantada pela evidente falta de seriedade intelectual.
Sem imagem de perfil

De Bruce Lóse a 12.03.2007 às 14:39

É como apedrejador crónico do Diário Ateísta que venho concordar com o que escreve sobre ele.

No entanto, ou estarei muito enganado, o que se pretende no DA é uma circunscrição proto-corporativa que muitos julgam essencial ao exercício da opinião. O elan não é necessariamente piromaníaco, mas uma consequência natural da nossa tibieza democrática.

Se o efeito de grupo resvala para o efeito matilha, isso deve-se principalmente à intenção de um ou outro autor um particular.
Que nunca nos dê para pior...
Sem imagem de perfil

De lino a 12.03.2007 às 10:34

Eu fui um dos visionários generosos, mas não considero que tenha sido perigoso. Ia a caminho dos 26 anos, lutei por um Portugal melhor, mas sem nunca me julgar detentor da verdade e sempre estabelendo pontes. Trabalhava, então, numa grande empresa de serviços, na qual não houve qualquer saneamento, porque nós, aqueles que apelida de perigosos, o evitámos, contra a vontade de outros que politicamente se situavam à nossa direita. Quando saí da empresa, 3 anos depois, todos, do CDS à então UDP, se despediram de mim com grande cordialidade. Creio que a verdadeira história do PREC nunca será conhecida, e é pena. Quanto aos outros dois temas, absolutamente de acordo.

Comentar post



Mais sobre mim

foto do autor



Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.




Arquivo

  1. 2025
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2024
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2023
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2022
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2021
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2020
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2019
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2018
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2017
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2016
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2015
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2014
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2013
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2012
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
  183. 2011
  184. J
  185. F
  186. M
  187. A
  188. M
  189. J
  190. J
  191. A
  192. S
  193. O
  194. N
  195. D
  196. 2010
  197. J
  198. F
  199. M
  200. A
  201. M
  202. J
  203. J
  204. A
  205. S
  206. O
  207. N
  208. D
  209. 2009
  210. J
  211. F
  212. M
  213. A
  214. M
  215. J
  216. J
  217. A
  218. S
  219. O
  220. N
  221. D
  222. 2008
  223. J
  224. F
  225. M
  226. A
  227. M
  228. J
  229. J
  230. A
  231. S
  232. O
  233. N
  234. D
  235. 2007
  236. J
  237. F
  238. M
  239. A
  240. M
  241. J
  242. J
  243. A
  244. S
  245. O
  246. N
  247. D
  248. 2006
  249. J
  250. F
  251. M
  252. A
  253. M
  254. J
  255. J
  256. A
  257. S
  258. O
  259. N
  260. D
  261. 2005
  262. J
  263. F
  264. M
  265. A
  266. M
  267. J
  268. J
  269. A
  270. S
  271. O
  272. N
  273. D

Maria Sofia Magalhães

prosas biblicas 1.jpg

À venda na livraria Ler Devagar



caminho dos ossos.jpg

 

ciclo da pedra.jpg

 À venda na Edita-me e na Wook

 

da sombra que somos.jpg

À venda na Derva Editores e na Wook

 

a luz que se esconde.jpg