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Remate

por Sofia Loureiro dos Santos, em 23.07.23

chapeau-de-paille.jpg

À minha esquerda, em cima da secretária, o meu chapéu de palha comprado em Apt. Está calor e sinto um apaziguamento que se vai tornando cada vez mais raro. Na televisão Jessica Fletcher continua a ver Cabot Cove encolher de gente, tantos os cadáveres dos assassinados e, consequentemente, os brilharetes por ela desvendados.

Nada melhor para um sábado de manhã. E o chapéu faz-me lembrar alguns episódios mais ou menos caricatos da nossa viagem por terras de França.

Um episódio digno de nota foi a nossa chegada a Toulon. Armados de waze, seguimos aplicadamente as instruções repetidas desesperadamente quando não virávamos para onde nos era determinado. Mas havia muitas ruas que estavam barradas com pilares, abertas apenas a moradores. Depois de várias voltas, estacionámos o carro e fomos a pé descobrir o hotel.

A nossa atitude de estrangeiros perdidos chamou a atenção de um senhor muito magrinho, com sinais evidentes de cirurgia cervical, com a pele mais escurecida que a nossa, com roupas largas e enxovalhadas. Dirigiu-se a nós simpaticamente e, quando percebeu o que se passava, foi levar-nos ao hotel. Não contente com isso, para nos ensinar o caminho de carro, pois o hotel tinha parque de estacionamento e, a pé, era longe, entrou no carro e indicou-nos o caminho.

Ao chegarmos ao hotel, oferecemos-lhe uma nota para lhe agradecer. Ele recusou veementemente e nós ficámos envergonhadíssimos pelo nosso gesto, com grande receio de o ter ofendido. De facto estamos mais ou menos habituados a esta simpatia da parte de arrumadores de carros. Fiquei a pensar que, provavelmente pelo seu aspecto magrebino, concluímos que fazia parte desse grupo. Ou seja, sentimo-nos horrivelmente mal, espantados e agradecidos pela disponibilidade e generosidade de alguém que nunca tínhamos visto e que não iríamos encontrar mais.

Outro episódio foi o que se passou em Cannes, também no hotel. Ao pequeno-almoço, a senhora que estava a varrer o pátio e a limpar as mesas ouviu-nos falar português, abriu um sorriso cúmplice e cumprimentou-nos também em português. Encetámos uma pequena conversa, ficando a saber que era cabo-verdiana emigrada em França.

O recepcionista, que nos queria esclarecer de alguma coisa, depreendendo que não nos sabíamos exprimir em francês, pediu à senhora que fizesse de intérprete. Gerou-se uma confusão porque nós respondemos em francês, ela já não sabia em que língua deveria falar e o recepcionista ficou todo baralhado.

Como se vê, os hotéis foram sede de várias situações inusitadas. Em Nimes, depois de nos instalarmos a descansar após a viagem, a primeira coisa que o meu encalorado marido fez, como sempre fazia, foi ligar o ar condicionado. No entanto o aparelho ficou mudo e quedo, apesar das várias tentativas e intervenções realizadas pelo meu desesperado companheiro.

Ligou para a recepção, já ligeiramente irritado, e seguiu as instruções que lhe deram. Mas o efeito foi nenhum. Ligou de novo para que alguém fosse reparar a avaria do ar condicionado.

Entretanto, eu tinha-me instalado confortavelmente, recostada na cabeceira da cama, com o portátil sobre os joelhos ligado a uma tomada que estava estrategicamente mesmo atrás da mesa de cabeceira, tendo desligado o inútil candeeiro, a ouvir vagamente a TV.

Quando o recepcionista chegou, muito simpático, olhou para o aparelho e a seguir foi à minha mesa de cabeceira, apontando a tomada onde estava ligado o portátil. Foi explicando sorridente que eu tinha desligado o candeeiro.... e o ar condicionado; por isso não funcionava.

E Apt, para além dos chapéus de palha, deixou-me uma marcada impressão. Suspeito que também eu, embora sem querer, deva ter deixado alguma na Farmacêutica que me atendeu, quando a ela recorri e, no meu mais fantástico francês, pedi que me desse toilettes.

Depois de um silêncio espantado por parte da Farmacêutica, que me olhou com um ar meio assustado, disse: "Ah, mais oui, lingettes!"

Confesso que fiquei sem perceber o alívio dela, mas alguém a meu lado me esclareceu, quando saímos da Farmácia: "Pode dizer-se apropriadamente que a utilização de toilettes dispensa a utilização de lingettes. Em contrapartida, as toilettes são menos portáteis que as lingettes..."

lingettes toilettes.jpg

Enfim, peripécias várias que marcam pormenores de que não nos esquecemos mais.

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publicado às 18:01

A chave

por Sofia Loureiro dos Santos, em 03.07.23

Pinheiros Hasegawa Touhaku.jpg

Pinheiros

Hasegawa Touhaku

 

A minha mãe vai buscar

O meu anel de noivado

Para que possa enfeitar

O meu amor de brocado

 

A minha mãe vai soprar

As folhas envelhecidas

As aves vão recriar

Melodias esquecidas

 

A minha mãe vai benzer

Bordados que nunca fiz

A fome de bem-querer

Os muros que nunca quis

 

A minha mãe vai guardar

A chave que não me entrega

No cofre do seu olhar

O canto que me sossega

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publicado às 17:01

Vertigem

por Sofia Loureiro dos Santos, em 01.07.23

GaryChristian_IsThereHope.jpg

Is There Hope

Gary Christian

Saboreio a solidão
Como um abraço de mar
Perco-me na imensidão
No delírio de afundar

Cubro o mundo com o véu
Que inventei só para mim
Entre os olhos e o céu
Uma fronteira sem fim

No vício desta vertigem
Que me faz voar por dentro
Concentro-me na origem
Buraco negro no centro

Vou morrendo nesta luz
De um silêncio que arrebata
Uma ausência que seduz
Um nó górdio que se ata

Pode ser que venha a paz
Manto seguro e constante
Com que a alma se desfaz
Num futuro já distante

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publicado às 08:15


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