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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Sendo o último dia do ano é suposto dizer-se qualquer coisa inspirada, ou inspiradora. Fazer balanços de perdas e ganhos, esconjurar azares do ano que termina, vaticinar futuros imediatos e longínquos para o ano que começa.
Nada é mais previsível que a imprevisibilidade.
Mergulhados no quotidiano, no rotineiro e apagado romance das nossas existências, não temos tempo, nem ânimo, nem capacidade para ver além. A crise, a guerra, o clima, o fogo, a seca, as cheias, incertezas que se tornam certezas de tão constantes e iguais, ano atrás de ano. Sem sequer percebermos os momentos de felicidade, a sorte do acaso de termos uma vida sem grandes sobressaltos mas que nos parece sempre pouca.
Por isso nada tenho de grandioso para pensar ou dizer. Apenas que aqui estou, que continuo a amar e a torturar-me com o que não consigo resolver, a espantar-me com o que não sei e a maravilhar-me com o que posso aprender, a agradecer o amor dos que me querem, a dar-me toda a quem gosto, sem reservas nem promessas, a tentar fazer da minha vida alguma coisa de útil.
Solidariedade e abandono, solidão e resistência, talvez palavras cruas que me foram acompanhando nos últimos tempos, mas também entrega, esperança e amizade.
Amanhã é mais um dia que teremos que viver, pleno, como todos os dias do ano.
Bom 2023!
Pequenina, franzina, morena, olha incessantemente para o smartphone.
E porque orientam mal as doentes? Utentes?
Afunda a ruga entre os olhos. Que fazer?
Está bem, mas não deveria ter vindo para cá. Que fazer?
E depois olha com atenção e espanta-se.
Sorriso aberto e ralhete meio brincalhão.
Admoesta quem não devia estar ali, no meio da solidão dos outros, mesmo que para adoçar por segundos essa solidão.
Um Natal de 2022.
A Urgência está calma.
A luz crua e fria invade os corredores.
Há algum silêncio, até na sala de convívio, transformada em ceia farta de Natal, com uma árvore enfeitada ao fundo.
Algumas enfermeiras descansam e comem.
Conversa-se pouco.
Há médicos calorosos, vindo de África, que alargam o sorriso e explicam a ausência dos companheiros, a braços com um caso grave.
No Natal quem vem à Urgência está muito doente.
A seguir chega a chefe, meio atrapalhada no seu português ibérico, cansada e carinhosa.
E há aquele bombeiro português, que partilha amor e cansaço e que divide a noite de Natal com ambulâncias e urgências.
De Espanha veio bom casamento.
Bebem água, sequiosos, ensonados.
Voltam ao trabalho.
Um Natal de 2022.
Está em Portugal desde 2010.
O marido veio em 2000.
Os filhos nasceram cá.
Neste momento o irmão está na guerra, os pais não quiseram sair do seu país.
Depois de ser médica especialista na Ucrânia teve de repetir o internato da especialidade em Portugal, pois não lhe deram equivalência.
Por detrás da máscara e dos olhos, sorri e chora, e atende os meninos que, na noite de Natal, estão doentes.
Conforta os pais deles e pensa nos seus meninos em casa, nos seus pais numa terra destruída, em tantos dos irmãos que, como o dela, batalham, literalmente, por um país independente.
Um Natal de 2022.
Partilhemos a casa, a mesa, a paz, com quem está desabrigado, com quem é menos afortunado, com quem sofre.
Partilhemos a nossa companhia com todos os que prescindem do seu conforto para dar conforto, ajuda, socorro, com quem mantém as nossas casas quentes, as ruas desimpedidas, as comunicações a funcionar, com quem nos limpa o que tanto e cada vez mais desperdiçamos.
E sobretudo, partilhemos a alegria.
Bom Natal a quem passa!
Há pessoas que passam pela vida tão quietas, silenciosas e discretas, que a palavra que nos lembram é presença.
De corpo médio e sólido, de voz branda e palavras poucas, de olhar atento e sorriso fácil, aparecem sempre de mãos cheias sem que se lhes peça nada, aparecem sempre quando são precisas, sem que se façam lembrar.
Uma linha de continuidade, um barco à espera, um manto que aquece.
Há pessoas que passam por nós tão quietas e discretas que nos fazem lembrar como o ruído é desnecessário.
Salvador Dali
Sem presentes nem lareira
Sem fé nem religião
Quero ter à minha beira
Uma luz de imensidão
Pode ser o teu olhar
Ou o quente de um abraço
O silêncio a estalar
No recanto do meu espaço
Mas se à porta for bater
Qualquer coisa de divino
A quem assim me quiser
Viajante ou peregrino
Faremos da companhia
A festa da Consoada
Carinho que se confia
À família ofertada
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