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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
É fácil não pensar, engolir as imagens cada vez mais rápidas que nos passeiam pelos televisores, monitores de computador, ecrãs de telemóveis. Anestesiamos a voz interior, o cruzamento das ideias, a dor, a dúvida, o espanto. Acomodamos tão bem as desculpas do cansaço, do stress, do impossível reverter do tempo e da vontade adormecida.
Para que serve a arte? Para quê a cultura? Cada vez a entendemos mais como qualquer coisa que entretém, que nos desvia da dura realidade, que nos ocupa o cérebro e os poucos momentos que temos para respirar.
Esquecemos rapidamente que viver implica entrega, fracasso, sonhos, memórias, fragmentos que queremos e temos que procurar, encaixe das mais diversas sensações que não compreendemos, busca de prazer e esquecimentos selectivos, amores vários e de vários tipos, morte, ódios e desrazões, tanta contradição e nebulosas como instantes de beleza e deslumbramento.
Pois é Do Deslumbramento que falo. Fui ver esta peça domingo passado, um texto original de Ana Lázaro construído para a comemoração dos 30 anos do Teatro Meridional.
Confesso que não sei o que dizer, de tal forma me marcou.
O jogo de luzes, o espaço cénico minimalista, a depuração e simplicidade da representação, a música, a incrível sensação de que não estamos perante uma peça de teatro mas de cenas e de conversas interiores daquelas personagens.
Quem são elas? Elas como actores ou os actores como personagens? Estamos dentro de alguma coisa prestes a acontecer ou a recuperar fragmentos do que aconteceu? O que é um corpo, uma memória, uma verdade? O que faz o tempo? É o tempo que faz o corpo e a memória ou a memória que conta o tempo e constrói um corpo? De que nos lembramos verdadeiramente? O que desencadeia a sensação? A luz, a sensação de queda no abismo, a certeza do branco ou do escuro? A dúvida? A incerteza das lembranças, dos sons, dos pequenos acordares dos nervos, da água nas mãos, do inundar das perguntas?
Quem somos para nós? Quem somos para os outros? O que se esconde em cada memória refeita ou em cada corpo que retalha o tempo de que se recorda?
Teatro tão simples e erudito, que parte de cenas breves e de sensações, do trabalho do actor, de uma peça como Bruscamente no Verão Passado, em que é preciso apagar uma fatia de cérebro para cortar uma memória, para a recuperação de uma fatia de cérebro para recuperar uma vida, pela memória.
Do Deslumbramento. Das melhores peças que tenho visto no Meridional, e todas elas são soberbas.
Ainda têm uma semana.
Se eu fosse à terra do bravo
Se eu fosse à terra do bravo
Bravo meu bem
Sem a tua companhia
Bravo meu bem
Sem a tua companhia
E de lá viesse cravo
E de lá viesse cravo
Bravo meu bem
Para ver se alvorecia
Bravo meu bem
Para ver se alvorecia
Se as ondas que o mar estende
Se as ondas que o mar estende
Bravo meu bem
Nos braços da ventania
Bravo meu bem
Nos braços da ventania
No canto que se suspende
No canto que se suspende
Bravo meu bem
Com a tua valentia
Bravo meu bem
Com a tua valentia
Que seja de bravo e terra
Que seja de bravo e terra
Bravo meu bem
O amor que arrepia
Bravo meu bem
O amor que arrepia
No cravo da nossa guerra
No cravo da nossa guerra
Bravo meu bem
A espuma que nos sacia
Bravo meu bem
A espuma que nos sacia
Canção popular dos Açores
Zeca Afonso
Eu fui à terra do bravo
Eu fui à terra do bravo
Bravo meu bem
Para ver se embravecia
Bravo meu bem
Para ver se embravecia
Cada vez fiquei mais manso
Cada vez fiquei mais manso
Bravo meu bem
Para a tua companhia
Bravo meu bem
Para a tua companhia
Eu fui à terra do bravo
Eu fui à terra do bravo
Bravo meu bem
Com o meu vestido vermelho
Bravo meu bem
Com o meu vestido vermelho
O que eu vi de lá mais bravo
O que eu vi de lá mais bravo
Bravo meu bem
Foi um mansinho coelho
Bravo meu bem
Foi um mansinho coelho
As ondas do mar são brancas
As ondas do mar são brancas
Bravo meu bem
E no meio amarelas
Bravo meu bem
E no meio amarelas
Coitadinho de quem nasce
Coitadinho de quem nasce
Bravo meu bem
P'ra morrer no meio delas
Bravo meu bem
P'ra morrer no meio delas
Memories, Dreams, & Reflections
Deirdre Doyle
Vou cantando em novelas de encantar
Embrenhada nas florestas invisíveis
Respirando como flor a despertar
Entre as pedras de caminhos impossíveis
Salgo o sangue com que tatuo o destino
Refluindo nas palavras que desenho
Mais fugazes que um poema repentino
Mais letais do que as espadas que não tenho
Forma um grito o teu nome que não vejo
Na candura da minha dedicatória
A presença mais ausente que protejo
Esculpida na cortina da memória
Caetano Veloso & Gal Costa
Eu vi um menino correndo
Eu vi o tempo brincando ao redor
Do caminho daquele menino
Eu pus os meus pés no riacho
E acho que nunca os tirei
O sol ainda brilha na estrada e eu nunca passei
Eu vi a mulher preparando outra pessoa
O tempo parou pra eu olhar para aquela barriga
A vida é amiga da arte
É a parte que o sol me ensinou
O sol que atravessa essa estrada que nunca passou
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Eu vi muitos cabelos brancos na fronte do artista
O tempo não para e no entanto ele nunca envelhece
Aquele que conhece o jogo, do fogo das coisas que são
É o sol, é o tempo, é a estrada, é o pé e é o chão
Eu vi muitos homens brigando, ouvi seus gritos
Estive no fundo de cada vontade encoberta
E a coisa mais certa de todas as coisas
Não vale um caminho sob o sol
E o sol sobre a estrada, é o sol sobre a estrada, é o sol
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha no ar
Por isso é que eu canto, não posso parar
Por isso essa voz tamanha
Sophia de Mello Breyner Andresen
Assim o amor
Espantando meu olhar com teus cabelos
Espantando meu olhar com teus cavalos
E grandes praias fluidas avenidas
Tardes que oscilavam demoradas
E um confuso rumor de obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar dos campos
Com seu fuso sua faca e seus novelos
Em vão busquei eterna luz precisa
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Geografia, 1967
wait for the promised
Permaneço nos simples gestos do viver.
O segurar da maçã o apertar dos olhos
o arrepiar da roupa o engolir do silêncio
gota a gota saboreando a dureza
e a maturidade das rugas
o aninhar do corpo o enrolar da toalha
somando os intervalos da respiração do mundo.
Três Macacos Sábios
A mais subtil e invencível censura é a própria, tendendo a transformar-se em omnipresente. Impõe-nos um silêncio que se torna mais profundo e que abrange cada vez mais assuntos. E eu estou imersa na capacidade de me auto-censurar.
Ontem este blogue fez 17 anos. Tal como eu e tantas coisas que aprecio, nomeadamente a liberdade, está fora de moda. Discutir, trocar ideias, colocar opiniões à apreciação pública sem que estas sejam de imediato a razão de insultos, de assassinatos de carácter, do destilar de ignorância, preconceitos, ódio, desprezo, acusações, são conceitos datados e a cheirar a bafio.
Mas quando me revolto e resolvo empunhar a metafórica pena da expressão livre do pensamento, quando decido que vou opinar sobre as minhas pequenas e pouco importantes preocupações, ouço o nosso Presidente Marcelo Rebelo de Sousa a demonstrar que o silêncio pode ser mesmo de ouro, que as palavras devem ser medidas e escrutinadas pela nossa censura interior, que a prudência e a possibilidade de causar mais turbulência e ruído esdrúxulo devem ser muito ponderadas, antes de as proferirmos.
Aliás o nosso Presidente é o exemplo vivo da verborreia cada vez mais perigosa, da falta de filtros, do desbragar do disparate. Não percebo bem se o objectivo é provocar ou se é apenas um destemperamento irreprimível de alguém que nunca foi muito contido.
E por isso, tal como um sinal dos céus, desce de novo sobre mim o manto da censura impelindo-me ao calar da boca, mas mantendo os olhos e os ouvidos bem abertos.
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