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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Como todos as cidades e vilas do Alentejo, Pavia tem casas térreas, brancas, com cores contrastantes a rodear as portas e janelas. Tudo respira sossego.
Era quase hora do almoço e o largo estava vazio, com um pequeno café num dos lados, uma mesa de alumínio cá fora encostada à parede, ladeada por duas cadeiras também encostadas, de face para a rua. A sugestão de um aperitivo foi muito bem recebida, mas pedi para irmos para o centro da vila, pois haveria, com certeza, mais movimento.
Só que, após uma busca infrutífera, de alguns metros nas ruas que saíam do largo, onde estava uma igreja e o edifício da Junta de Freguesia para além de um coreto, percebi que estávamos mesmo no centro.
O aperitivo constou de licor de poejo (uma maravilha alentejana) e um vermute, antes de nos aventurarmos ao almoço.
O Retiro dos Motoristas foi o escolhido, mesmo à saída da vila. No pátio havia uma pequena aglomeração de homens à volta de um churrasco, que assava frangos. Entrados e sentados, com larga distância social como mandam as boas regras higiénicas pós-COVID-19, foi-nos mostrado o cardápio: os pratos do dia eram chispe com grão e lombo assado no forno, acompanhado de batatas fritas e arroz, mais uma salada. Rematámos com pudim de café, e tudo a um preço bastante módico.
Muito bom almoço, na verdade, simples, bem temperado e barato.
Regressados calmamente a Arraiolos, aproveitei para ler o livro que levava enquanto o sol iluminava o quarto, pois os candeeiros mantinham-se mortiços e tristes. Tarde calma e serena, sem sobressaltos nem correrias, jantar de novo outros petiscos e, após um revigorante pequeno almoço, acabou-se o desconfinamento alentejano.
Soube bem, embora o objectivo inicial não tenha sido cumprido. Mas estas escapadelas pontuais refrescam o quotidiano rotineiro e recarregam os meses seguintes.
Santana do Campo
Resolvemos ir dar uma volta aos arredores. Estrada fora em direcção a Santana do Campo, para ver umas ruínas romanas. Lá chegados constatámos que as ruínas eram visíveis nas traseiras de uma igreja logo à entrada da vila, na ponta de um pequeno larguinho, onde estava estacionada ma camioneta a descarregar imensas grades de cerveja.
Embora não tenho tocado na cerveja, consegui resvalar com a roda direita no passeio, raspando a jante e deixando o pneu com uma cicatriz. Esperámos, esperámos e, quando achámos que já era demais, havia outra camioneta atrás de nós. Marcha a trás em comboio e lá nos conseguimos safar em sentido proibido.
A seguir fomos a Pavia, passando ao lado do Monte da Ravasqueira, outro fornecedor da República do Petisco.
Os campos estavam bonitos e o dia soalheiro. O meu companheiro pediu-me para parar e colheu-me um pequenino bouquet de flores silvestres.
Meu amor apanhou flores
mesmo à beira do caminho
um bouquet de muitas cores
enroladas de carinho.
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Depois de uma noite um pouco sobressaltada pelas inúmeras vezes em que acordei, tive alguma dificuldade em levantar-me por causa das dores lombares que me acometeram. "De certo que não encolheu a barriga, nem juntou as omoplatas!" ouvi eu a vozinha exasperada da minha PT a buzinar-me ao ouvido. Mas acho que o problema estava mais no colchão do que na minha postura anatómica.
Mas férias são férias e nem a escorregadia banheira sem apoio nos desmoralizou. Pequeno-almoço muito agradável, numa lindíssima sala ao lado da cozinha, separada do hall de entrada por umas portadas de ferro.
E o dia, fresquinho por sinal, esperava por nós. Percorremos Arraiolos à procura da casa para a qual tinha telefonado, a indagar da possibilidade de restauro do tapete. Esperámos que abrisse sentados numa esplanada em frente a uma farmácia, a ouvir os locais conversando, naquela melodia cantada e arrastada do Alentejo, até que decidimos informar-nos do horário da loja. Descobrimos que havia outra no largo da Câmara que, essa sim, deveria estar aberta. Em Arraiolos as casas de tapetes são omnipresentes e inundam as ruas, com mostras de todos os tipos de bordados, cores e motivos. Mas a que queríamos estava mesmo ao lado da do edifício da Câmara.
Após demoradas e aturadas medidas, com resmungos desolados da parte do lojista, concluí que o custo da restauração do tapete era o mesmo da compra de um novo. Fiquei bastante desiludida e triste, porque o que quero é aquele, desenhado e confeccionado pelas mãos exímias da minha mãe, habilidosa e perfeccionista como só ela é capaz.
Para o quadro ser completo, o Centro de Interpretativo dos Tapetes de Arraiolos estava encerrado.
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A casa onde pernoitaríamos, reservada pelo booking.com, localizada mesmo no centro da cidade, tinha uma porta pesada e principalmente cerrada... Tocámos mas ninguém respondeu. Telefonámos e, após alguns poucos minutos, apareceu o (presumível) proprietário, deslocando-se com bastante dificuldade mesmo com a ajuda de uma bengala, penitenciando-se pela ausência e tartamudeando a justificação, que se relacionava com arranjos de tapetes de Arraiolos.
Fomos conduzidos ao quarto, ou seja, fomos informados de como encontraríamos o quarto, que ficava no alto de umas íngremes, rústicas (muito bonitas) e estreitas escadarias de pedra, que trepámos (nós e a mala), pois elevador não rima com casa apalaçada do início do séc. XX, nem o senhor que nos guiou podia ajudar, caso fosse necessário. Mas tudo bem. Os maravilhosos e intensivos treinos dos últimos tempos asseguraram-me uma chegada lá ao cimo triunfante e sem arfar.
O quarto, na verdade uma pequena suite, era muito agradável, espaçoso, fresco e silencioso. Os candeeiros é que se tinham arrependido de alumiar; tinham umas lâmpadas tão fraquinhas que era quase impossível ler, e ver também era complicado. A internet só funcionava no pequeno átrio, e o número de tomadas eléctricas mal dava para carregarmos os telemóveis.
Nada de mais. Descansámos dos cansaços inexistentes e, ao fim do dia, rumámos à República do Petisco para comer qualquer coisa. E que boa República esta - uma tábua de queijos, um prato de queijo assado com orégãos e ovos mexidos com espargos, tudo bem regado por um bom tinto, o da casa (Comenda Grande), gente nova muito amável, enfim, uma maravilha.
De volta ao quarto ligámos a TV (uma relíquia do século passado) para ver as novidades, mas esta não colaborou e eu revivi os longínquos anos em que havia "chuva" no écran, não se ouvia nada e era impossível assistir fosse ao que fosse. Tentámos a TV grande e moderna da sala ao lado para o convívio dos hóspedes, mas ela não se comoveu e o resultado foi o mesmo.
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Se precisamos de restaurar tapetes e carpetes de Arraiolos, é a Arraiolos que vamos.
Com esta lógica inabalável e aproveitando uma semana cheia de feriados com umas férias desconfinantes pelo Alentejo, pusemos rodas ao caminho.
Qualquer escapadela deve sempre incluir um bom roteiro gastronómico, pr isso iniciámos o nosso almoçando na Casa das Enguias, onde o ensopado delas não nos desiludiu. No fim houve um pequeno desaguisado por causa de umas meias-tulipas (que eu nem sabia que existiam) que substituíram as tulipas (que não havia) que, por sua vez, estavam a substituir a caneca (que também não existia). Mas as ditas meias-tulipas custavam quase o dobro das imperiais, embora tivessem exactamente a mesma capacidade (20cl). Depois de uma abundante mas pouco perceptível explicação, decerto devido à máscara que atrapalhava a eloquência do empregado do restaurante, lá se repuseram os preços e partimos em direcção ao sul.
Deambulámos pela estrada nacional, sem pressas, observando a paisagem alentejana. Passámos Vendas-Novas, depois Montemor-o-Novo e lá chegámos a Arraiolos. Paz e serenidade, é o que se deseja.
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Barcos - Júlio Pomar
No fim de um lugar que desconhecemos
uma porta que se abre devagar
nuvens de pó branco como veneno
glórias desfeitas passados que repisamos
um fluido esquecimento de tudo o que doemos.
Roufenha a voz que repete o fado
guitarras de pobreza aves sem destino
numa praia de arvoredos crivados de gaivotas.
Tiros de versos e azedume nas manhãs de brilho e nevoeiro
a porta que se fecha sem que vislumbremos
o futuro a que julgámos pertencer.
Outros serão os ventos outros os lugares de encanto
sempre nos gestos esta mansa loucura este canto
de flores e de mar de tempestades de navios e terra.
Esta soma de gente multiplicada por melancolia
este cheiro esta luz e o morno passarinhar da poesia.
Camões por Fernão Gomes
Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.
Trago dentro de mim a nau simbólica
Flor de la Mar: navegação do espírito
Nau Nação. Aquela que se fez para fora
e se perdeu para dentro. Sou essa Nau
Memória. Talvez perdida. Talvez esquecida.
Sou essa viagem de circum-navegação
à volta do Mundo e de mim mesmo.
Nau Ideia. Sem ela nós não somos nada
não mais que um bairro perdido a Ocidente
com ela se navega mesmo se parada
só com ela se pode chegar ainda
ao que dentro de nós é sempre ausente.
Nação que foi Europa antes de Europa o ser
Flor de la Mar: quatro sílabas com que se diz
o nome do poema
e do país.
Sendo nós portugueses, convém saber o que é que somos.
a) adaptabilidade, que no mental dá a instabilidade, e portanto a diversificação do indivíduo dentro de si mesmo. O bom português é várias pessoas.
b) a predominância da emoção sobre a paixão. Somos ternos e pouco intensos, ao contrário dos espanhóis — nossos absolutos contrários — que são apaixonados e frios.
Nunca me sinto tão portuguesmente eu como quando me sinto diferente de mim — Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Fernando Pessoa, e quantos mais haja havidos ou por haver.
Na sua estreia parlamentar, em 2015, Mário Centeno foi gozado pela direita. O País ainda estava perplexo com a reviravolta pós-eleitoral, uns esperançosos outros raivosos. O ministro das Finanças era uma pedra chave da Geringonça e, depois de Vítor Gaspar, ter um Ministro peculiar que se estreava na política levantava muitas dúvidas e muitos receios. Sei que foi o que aconteceu comigo.
E no entanto, ano após ano, Mário Centeno foi acertando as contas e cumprindo promessas e previsões, muitas vezes incompreendido mas com os melhores resultados de sempre. Foram cerca de 6 anos memoráveis.
Esperemos que a sua saída não faça regressar o descrédito dos cidadãos no governo. A tarefa do seu sucessor é hercúlea e não há ninguém insubstituível. Mas Mário Centeno merece os nossos agradecimentos e aplausos.
Aguaremos os próximos tempos.
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