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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Suspendamos por um instante o arvoredo
as aves que nos oferecem as manhãs
o azul de uma onda que desmonta
o sal depositado na pele de alguém.
Suspendamos por um instante a febre
a premente necessidade de amar
a pedra que segura esta torrente
as palavras que sabemos desenhar.
Suspendamos depois as incertezas
o mundo que apertamos na garganta
as mãos que desesperam de desertas
as almas deserdadas de esperança.
Parece que estamos numa fase estável da pandemia em Portugal. Todos os dias há novos casos mas a percentagem de evolução mantém-se entre os 0,5 e os 1% e, mais importante que isso, o número e percentagens de doentes internados e em Unidades de Cuidados Intensivos têm vindo consistentemente a descer.
Por agora a pandemia está controlada e podemos, com cuidado, mantendo a vigilância, os cuidados de prevenção e de redução de riscos, começar a regressar à nossa vida. Temos que perder o medo de desconfinar.
Há muito que ficou suspenso, em termos de cuidados de saúde – consultas, cirurgias, rastreios – que tem que ser recuperado o mais depressa possível, para que se minimizem as consequências inevitáveis desta suspensão, dos atrasos nos diagnósticos e nas terapêuticas.
Talvez fosse de ponderar, como já tantos disseram, retomar a orientação dos doentes com COVID-19 para alguns hospitais de referência, libertando os outros para a necessária recuperação da actividade.
Muito fizemos nestes meses e muito aprendemos, pelo menos assim o espero. As práticas que fomos obrigados a implementar em tempo recorde, no campo das soluções de teletrabalho, de teleconsultas, de agilização dos atendimentos e resolução de problemas online, por telefone, por aplicações, etc., evitando deslocações e perdas de tempo inúteis, deverão ser optimizadas e continuadas, no SNS e em todas as outras áreas de actividade.
A redução de veículos nas estradas, para além do ganho ambiental, faz diminuir os acidentes de viação, as filas de trânsito, as despesas com os combustíveis, os problemas de estacionamento. A melhoria de qualidade de vida se pudermos combinar melhor o trabalho com tudo o resto, a possibilidade de desburocratizar os procedimentos, a disponibilidade para resolver as coisas sem complicar que a pandemia nos deu, são para manter e incentivar.
A pandemia não está vencida, mas temos que vencer o medo. Lavar as mãos, manter a distância social, respeitar os outros e lembrarmo-nos da enorme multidão que não pode nem nunca conseguiu ficar em casa à espera que passasse o perigo, porque esteve a assegurar o sustento, a saúde e o conforto dos outros. E também de outra enorme multidão que está aflitíssima, sem dinheiro para pagar as despesas básicas, nomeadamente comida, e que precisa da nossa solidariedade para viver e para poder continuar a trabalhar.
Todos queremos regressar à vida, rapidamente, mas a qual vida? Essa é a questão verdadeiramente mais importante.
Avestruz - Bordalo II
Tenho andado a despir-me de tralha. De tanto papel, coisas inteiras e em bocados, velhas e novas, esquecidas e poeirentas, daquelas que vamos encafuando em gavetas, prateleiras e nalgum canto da memória que deixou de fazer sentido, ou cujo sentido se virou, mudou ou as transformou em desperdícios.
Coisas e mais coisas. Mas sobretudo pele que nos pesa, que já não nos serve, que alargou e engelhou, ou que esticou e rebentou, deixando um rasto invisível aos olhos mas presente no nosso quotidiano.
Não somos o que já fomos e não precisamos do que já precisámos, ou nunca precisámos mas pensávamos que sim. Tanta coisa indispensável que nunca usámos, que nunca nos fez falta, que nunca se revelou útil.
Apesar de dolorosas, estas épocas de despojamento são absolutamente indispensáveis à manutenção da nossa alma, da máquina que nos governa.
Sinto-me mais leve, mais pequena, movimentos mais amplos e o mundo mais à minha medida.
Tralha e mais tralha. Sem ela percebemos a nossa verdadeira dimensão.
Hermínio Bello de Carvalho & Capiba
Zélia Duncan & Nelson Faria
Amigo é feito casa, que se faz aos poucos
e com paciência, pra durar pra sempre.
Mas é preciso ter muito tijolo e terra,
preparar reboco, construir tramelas.
Usar a sapiência de um João-de-barro
que constrói com arte a sua residência.
Ah, que o alicerce seja muito resistente
que às chuvas e aos ventos possa então a proteger.
E há que fincar muito jequitibá
e vigas de jatobá,
e adubar o jardim e plantar muita flor, toiceiras de resedás...
Não falte um caramanchão pros tempos idos lembrar,
que os cabelos brancos vão surgindo
que nem mato na roceira
que mal dá pra capinar...
E há que ver os pés de manacá cheios de sabiás,
sabendo que os rouxinóis vão trazer arrebóis.
Choro de imaginar!
Pra festa da cumieira não faltem os violões!
Muito milho ardendo na fogueira
e quentão farto em gengibre,
aquecendo os corações.
A casa é amizade construída aos poucos
e que a gente quer com beira e tribeira,
com gelosia feita de matéria rara
e altas platibandas, com portão bem largo
que é pra se entrar sorrindo
nas horas incertas,
sem fazer alarde, sem causar transtorno.
Amigo que é amigo, quando quer estar presente
faz-se quase transparente, sem deixar-se perceber.
Amigo é pra ficar. Se chegar, se achegar,
se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer...
Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha
e oferece lugar pra dormir e comer.
Amigo que é amigo não puxa tapete,
oferece pra gente o melhor que tem e o que nem tem.
Quando não tem, finge que tem,
faz o que pode. E o seu coração... reparte que nem pão.
Realmente as candidaturas presidenciais para o próximo Janeiro não devem fazer parte das maiores preocupações dos portugueses.
Mas são importantes. Marcelo Rebelo de Sousa está em plena campanha eleitoral (se é que alguma vez deixou de estar). Note-se que tenho apreciado muitíssimo o seu desempenho que foi, para mim, uma enorme surpresa e agradável. Mas a verdade é que tem defeitos, como todos nós, felizmente.
Além disso Marcelo vem acumulando erros que considero graves, talvez na ânsia de se fazer notado, tentando rivalizar com a popularidade de António Costa. O episódio da transferência da verba inscrita no OE 2010 para o Novo Banco é disso um excelente exemplo.
Acho que ainda ninguém percebeu nada do que se passou, ou então percebemos todos bem de mais. António Costa não queria arriscar-se a ser acusado de dar tanto dinheiro à banca numa altura em que as camadas socialmente mais frágeis da população estão a ver os seus rendimentos, empregos, perspectivas de futuro, etc., esfumarem-se a uma velocidade estonteante. E por isso aquela promessa de não haver dinheiro para o Novo Banco antes de uma auditoria. Provavelmente esqueceu-se de acertar essa estratégia com o Ministro das Finanças. Depois Marcelo cavalgou a onda populista e resolveu interferir no governo, desautorizando Mário Centeno.
Enfim, esta explicação é tão boa como qualquer outra. Mas há alguns factos que são indesmentíveis, mesmo na época dos alternativos: a transferência da verba era conhecida por todos visto que estava no OE; não havia qualquer auditoria que pudesse parar essa transferência; Marcelo Rebelo de Sousa não tem nada que comentar as performances de qualquer ministro.
Portanto já estão todos fartos fartíssimos da COVID-19 e é preciso desatar a falar de outras coisas.
Como o Verão não vai veranear muito, temos nós que começar a inventar assunto. À falta do futebol, claro!
Foi quase ontem e quase nos lembramos
o quase temor com que quase trememos
o quase a medo que quase nos demos.
Foi quase agora que nem reparamos
que quase sabemos
que juntos seremos
quase
serenos.
Mulher chorando
Acerto os olhos na parede
Numa simetria discreta
Esquadria de luz em rede
Tristeza alinhada e secreta
Guardo nos braços a saudade
Beijos de sol e maresia
Espreito o povo e a cidade
A dor do medo que esvazia
No pouco que resta de nós
Colados ao muro da casa
Ensaiamos dedos e voz
Rascunho vibrante de asa
Black Poppy
Adeus oh minha mãe que já me vou
Com perfumes de cravo e hortelã
Entre a luz que do céu se evaporou
O líquido gotejo da manhã
Adeus oh minha mãe que já me falta
O mel que nos adoça a tempestade
No ardor da inquietude que me assalta
A força que se faz serenidade
Adeus oh minha mãe que hei-de voltar
Com a chuva que inunda a Primavera
No tempo que queremos sossegar
Do Maio que passou e já não espera
Adeus oh minha mãe que já não sei
Se a vida que iremos retomar
É o lume do passado que queimei
Na água de um futuro a remendar
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