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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Sérgio Godinho &Caetano Veloso
Cansados vão os corpos para casa
Dos ritmos imitados doutra dança
A noite finge ser
Ainda uma criança de olhos na lua
Com a sua
Cegueira da razão e do desejo
A noite é cega, as sombras de Lisboa
São da cidade branca a escura face
Lisboa é mãe solteira
Amou como se fosse a mais indefesa
Princesa
Que as trevas algum dia coroaram
REFRÃO:
Não sei se dura sempre esse teu beijo
Ou apenas o que resta desta noite
O vento, enfim, parou
Já mal o vejo
Por sobre o Tejo
E já tudo pode ser
Tudo aquilo que parece
Na Lisboa que amanhece
O Tejo que reflecte o dia à solta
æ noite é prisioneiro dos olhares
Ao Cais dos Miradoiros
Vão chegando dos bares os navegantes
Amantes
Das teias que o amor e o fumo tecem
E o Necas que julgou que era cantora
Que as dádivas da noite são eternas
Mal chega a madrugada
Tem que rapar as pernas para que o dia
Não traia
Dietriches que não foram nem Marlénes
REFRÃO
Em sonhos, é sabido, não se morre
Aliás essa é a Única vantagem
De após o vão trabalho
O povo ir de viagem ao sono fundo
Fecundo
Em glórias e terrores e aventuras
E ai de quem acorda estremunhado
Espreitando pela fresta a ver se é dia
E as simples ansiedades
Ditam sentenças friamente ao ouvido
Ruído
Que a noite se acostuma e transfigura
REFRÃO
Na Lisboa que amanhece
Marte
É engraçado como às vezes se completa um círculo ou um ciclo que nem sabíamos que estava por fechar. As recordações são assim. Reacendem-se por uma cor, um cheiro, um movimento. Repentinamente e por alguns milésimos de segundo, aquela sensação única de um determinado instante regressa e, atónitos, reconhecemo-la.
As noites no Alentejo são de um negrume limpo e intenso, com miríades de estrelas que, para um incauto e ignorante observador, se assemelham umas às outras variando apenas a dimensão e a intensidade do brilho. Sempre admirei a capacidade que algumas pessoas têm de identificar as constelações, de procurarem determinados planetas, de conhecerem as profundezas e os mistérios cósmicos.
Há uns dias aproveitámos a oportunidade de observar algumas destas maravilhas. Numa pequeníssima sala circular, com tecto em abóbada giratória aberta em fragmentos que mostravam retalhos do céu, à volta de um telescópio e de um computador, espreitávamos para o Universo com o objectivo de observar um ou outro planeta mais acessível. Um deles era Marte.
Ao olhar pela ocular vi uma figura grosseiramente circular, pequena e mal definida, alaranjada, que se ia deslocando no campo de visão e tremelicava como se fosse feito de matéria líquida fluindo com os movimentos de uma dança celeste, apenas conhecida por alguns iniciados. E foi então que me senti transportada para a sala de ecografia do Hospital da Ordem Terceira, onde fiz a primeira ecografia aquando da minha primeira gravidez. Nessa altura era efectuada entre as 10 e as 12 semanas e, pelo menos para mim, foi uma autêntica revelação. Alguma coisa, muito pequena, esbranquiçada e mal definida num fundo cinzento-escuro dançava incessantemente, como se rodopiasse num baloiço invisível, as imagens focando-se e desfocando-se num ambiente meio etéreo.
De alguma forma incompreensível os meus neurónios associaram as duas imagens e devolveram-me um pouco da inexcedível sensação daqueles momentos em que acreditei verdadeiramente que seria mãe. A sonda da ecografia não foi mais que a ocular de um telescópio perscrutando um universo tão misterioso e deslumbrante como o céu que diariamente nos comove, quando temos algum tempo para o apreciar.
Não fomos até à outra banda mas a esta, do Largo de Camões ao Terreiro do Paço, passando pelo Kaffeehaus, onde deglutimos o almoço. Na verdade este restaurante é óptimo e vale a pena comer as variedades de salsichas com batatas "Wedges" com especiarias, a Apfelstrudel e a Himbeer-Apfel-Tarte mit Mandelhobel, mas a Linzer-Schnitte não é nada de especial, assim como o Wienerschnitzel mit Erdäpfelsalat e o "Habsburger" mit Erdäpfelspalten. Ao nosso lado estavam duas senhoras, uma delas em que o gesticular alargado, o alinhar perfeito dos dentes frontais superiores, mais especificamente os incisivos e os caninos, a voz alta e condescendente (em relação à sua companheira de refeição), as sílabas modeladas com as vogais bem abertas e com uma acentuação típica (ÔÔptimo), para além da multiplicação e repetição do adjectivo ÔÔptimo, a colocava no topo do grupo de pessoas que-são-tão-giras-e-tão-magras-e-tão-sofisticadas-e-tão-ôôptimas, que conhecem de côr as saladas todas e que dividem sempre os magros pratos e as sobremesas, que nunca lhes apetece mais - de tôôdo - fazendo inveja a quem tem uma enorme tendência para o anafanso e adora batatas fritas e bolos de chocolate, para além da estupenda cerveja, dispensando os chás-verdes-gelados-com-gengibre e semelhantes.
A ideia era mesmo andar um pouco por Lisboa, essa eterna cidade desconhecida de quem cá mora. Lisboa é uma cidade lindíssima. Deambular pela Baixa Pombalina, misturar-me com a gente que formiga, a luz e a cor de Lisboa e do Tejo, agora que o podemos ver por entre as colunas do cais, devolvem-me sempre alguma da paz que busco nos dias de férias.
E é tão perto, Lisboa. Depois de estacionar no Camões, descemos a Rua Nova do Almada entrando e saindo das lojas, à procura de flores e de aguarelas que retratem a pureza de alguns instantes de felicidade. Devagar chegámos ao Terreiro do Paço. Subimos ao Arco da Rua Augusta, por umas escadinhas em caracol. Lá em cima o deslumbre: a toda a volta Lisboa - os telhados, as casas, a ruas, as lojas, as pessoas, o Castelo, a Sé, o Carmo, a abóbada da Câmara, a ponte 25 de Abril, o Tejo, o Tejo, o Tejo… e a outra margem, com as letras da Lisnave bem visíveis.
Foi ÔÔÔÔptimo!!!
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