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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Sittikorn Pokpong
Recolho-me em nevoeiro no todo cinzento da negação
no presente mais que passado sem futuro.
Recolho-me atrás do mundo no todo ausente de inspiração
no limite da selva para além do muro.
Tal como em ilhas de isolamento prisioneira de mim e da rotina
espaço-me despojo-me em sono lento
afasto desejos
desço a cortina.
(...) Mas se é assim tão evidente, porque nunca se deu este passo como deve ser? Porque será que a concretização se revela tão difícil? Porque será que as famílias e os alunos evitam esta escolha? A resposta está no projeto macabro de Nuno Crato. De acordo com o ministro, quem irá para estes cursos? Ora bem, além dos voluntários - coitadinho, tem 14 anos, mas não dá para mais... -, os que chumbarem duas vezes no ensino secundário também têm o destino traçado. É um castigo: és uma besta, vais já para jardineiro; sim, terás mais uma oportunidade para voltar ao ensino regular, mas para já ficas-te por aqui. Depois, se passares os exames do 9.º ou 12.º anos, logo veremos. (...)
Portugal vai pôr em experiência no terceiro ciclo do ensino básico o regresso à concepção do ensino de há meio século. A experiência-piloto anunciada no DN de hoje, que de facto só pode ser um teste à aceitação social da medida, contém todos os erros das concepções ultrapassadas de ensino vocacional:
1. Diz aos jovens que ir aprender uma profissão é sinal de insucesso escolar, em vez de promover as aprendizagens vocacionais de todos os alunos;
2. Cria a ilusão de uma certificação profissional sub-escolarizada, numa Europa em que já nenhum jovem é diplomado profissionalmente antes da conclusão do ensino básico;
3. Reforça a ideia de que o ensino profissional é "fácil" e é para jovens que não têm sucesso escolar, apesar do insucesso escolar ser essencialmente nas disciplinas que, por serem fundamentais, terão que continuar a existir nesses cursos. Ou imagina-se um diplomado do 9º ano que não saiba português e matemática por ser "profissional"? Dito de modo mais cru, já é bom certificar a ignorância se for numa via profissional? (...)
Ai Weiwei
Ficar à porta sempre à porta.
Vislumbrar contornos sombras
ouvir sons indistintos familiares
o morno em coisas conhecidas seguras
perfumes vagos de conforto.
Ficar à porta como ladrão faminto
ansiando por migalhas de carinho.
Salvador Dali
Na próxima semana o governo será de novo avaliado pela Troika quanto ao cumprimento da última versão do memorando de entendimento.
Tendo em conta que a Troika é co-responsável pela situação em que estamos e que Portugal é a última oportunidade para que esta política se justifique, a avaliação, por muito que todos saibamos que é negativíssima, será positiva.
Convém que não nos esqueçamos da instabilidade política que levou à queda do governo de Sócrates, eleito em 2009, empurrado por toda a oposição, que tinha a receita milagrosa para o crescente desemprego, a depressão económica, enfim, a resposta para a crise instaurada por Sócrates.
Da extrema-esquerda à direita mais reaccionária, de tudo se usou para assassinar as políticas entretanto defendidas pelo PS. A irresponsabilidade do BE e do PCP, que continuam a defender o paraíso na terra, sem que para isso se sintam obrigados a explicar a forma de o atingir, para além das promessas de ataque ao capital que explora os indefesos trabalhadores, assim como a irresponsabilidade do PSD e do CDS, cuja ideia de sociedade não inclui o serviço público, o estado como garante da igualdade de oportunidades, os direitos dos cidadãos à saúde e à educação, fizeram aprofundar o binómio crime / castigo para quem ousou aspirar à ascensão social e aos bens materiais, disponíveis apenas para quem tem berço.
Convém não nos esquecermos de todas as promessas desfiadas na campanha eleitoral, em que a mais emblemática foi a desvergonha da negação de redução dos rendimentos das famílias. Mas também convém lembrar o que foi dito que se faria e que está a ser feito por esta maioria, como a destruição do estado social, da escola e da saúde públicas, o esvaziamento das funções do estado, o empobrecimento da população mais carenciada e da classe média, a alienação de tudo o que pode ser privatizado, o assalto aos cargos públicos, o desrespeito pelo papel fulcral que uma informação liberta dos interesses económicos representa para o regime democrático.
Convém lembrar que a estabilidade política é, de facto, um bem, que a demissão deste governo e deste ministro das finanças não traria melhores soluções, pois não há alternativas. O PS de António José Seguro está mais preocupado em negar, mesmo que pela omissão, a existência de um passado recente, do que em demarcar as diferenças. Foi o PS que negociou, como governo demissionário e com os partidos desta maioria, o memorando de entendimento com a troika. Está obrigado a honrar esse compromisso e a apoiar as medidas que constam desse memorando ou das que são indispensáveis para que se cumpra. Mas o PS deve pugnar porque a sua voz, para além da troika, se oponha a tudo o que tem vindo a ser feito, a reboque da crise, da austeridade e da sua auto flagelação.
Convém lembrar que esta maioria foi votada em liberdade, para constituir governo e salvar Portugal, nas inspiradas palavras do nosso herói mais recente. Tem quatro anos para o fazer e nós todos, os eleitores, deveremos somar os prejuízos para apresentar a nossa conta, na tentativa de saldar a imensa dívida de que já somos credores.
É bom que não nos permitamos esquecer.
Requisitos mínimos para se pertencer à esquerda enérgica:
Nunca usar gravata
Falar sempre com as sílabas muito abertas e bem soletradas
Abrir muito os olhos
Dizer sempre companheiras e companheiros, homens e mulheres, pessoos e pessoas
Utilizar sempre superlativos de quantidade
Acentuar BANca, BANQUEIros, capiTAL, eNORme, esQUERda
Ter muitos dentes na boca
Induzir envelhecimento precoce a quem ouvir a militância
O verdadeiro desastre nacional, pelo qual a sublevação popular é certa, está na hipótese de cessarem os jogos de futebol todos os santos domingos.
Ignomínia desta jamais se admitirá. E logo após a torpe cena de mau teatro, protagonizada pelo árbitro do jogo entre o Benfica e o Dusseldorf, insinuando maldosamente uma agressão da parte de um jogador que apenas mostrou a sua indignação inocente e mansa, tal como o Presidente do mesmo clube, herói que não deixa que se ataque tão respeitador e desportivo homem.
Que se acautele o governo. Não há nada pior que o povo ficar com tempo para pensar.
A esquerda grande, enérgica e presente, a tal que tem como objetivo um governo de esquerda, tem uma visão de democracia interna peculiar, visto que até indica sucessores e formas de sucessão.
Mas parece qua há algumas companheiras da esquerda enorme, que não estão assim tão confortáveis com esta solução da esquerda gigante.
A luz apaga porque já raiou o dia
E a fantasia vai voltar pro barracão
Outra ilusão desaparece quarta-feira
Queira ou não queira terminou o carnaval.
Mas não faz mal, não é o fim da batucada
E a madrugada vem trazer meu novo amor
Bate o tambor, chora a cuíca e o pandeiro
Come o couro no terreiro porque o choro começou.
A gente ri
A gente chora
E joga fora o que passou
A gente ri
A gente chora
E comemora o novo amor.
Olhou para a travessa com doze sardinhas. Um exagero e um desperdício. Deveriam ter pedido uma dose para os dois. Dava e sobrava. Bem, sempre poderiam levar as que sobrassem para casa. Com um molho qualquer de cebolada dava uma refeição para um deles.
Deu-se conta de uma figura meio amarfanhada, uma sombra à sua frente. Um Homem um tanto curvado, de estatura média, a nadar dentro de uma camisa acinzentada e de umas calças puídas. Salmodiou algo incompreensível, num eslavo mesclado de sons portugueses, com gesto brando apontou para as sardinhas. Tinha fome.
Indicaram-lhe a cadeira ao lado e acenaram-lhe que se sentasse. Deram-lhe a salada e as sardinhas que restavam. O Empregado pôs-lhe na mesa um prato, um garfo e uma faca, aqueceu-lhe as sardinhas e encheu-lhe a travessa de batatas.
Levantou-se e agradeceu-lhes da mesma forma ininteligível. Deixou o prato totalmente limpo, apenas com os restos das cabeças das sardinhas. Encostados às ombreiras da porta, os Empregados comentavam que já há algum tempo que não aparecia e que, por vezes, era muito mal-educado. Mas desta vez, não tinha sido.
Chiara Bigatti
Elas deitam-se a fazer contas, dormem a sonhar com números e acordam a dividir.
Elas dividem-se entre a frutaria, o talho, os mercados, as marcas brancas.
Elas despedem as empregadas domésticas e impregnam-se do ser doméstico.
Elas aprendem a fazer pão, a demolhar feijão, a planear a refeição.
Elas inventam receitas, repartem a comida, enchem as lancheiras.
Elas desistem do cabeleireiro, do verniz das unhas, das águas-de-colónia.
Elas reciclam a roupa, lavam a roupa, passam a roupa.
Elas fazem bolos, compotas e carinho.
Elas transpiram, conspiram e suspiram.
Elas revoltam-se e resignam-se, resignam-se e revoltam-se.
Elas não têm trabalho e fartam-se de trabalhar.
Elas não têm salário nem direitos a reivindicar.
Elas deitam-se derrotadas e levantam-se esperançadas.
Elas perdem o que tinham e dão o que têm.
Elas deprimem-se, calam-se, entristecem.
Elas desenfeitam-se e enfeiam.
Elas desintegram-se.
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