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Cada um cumpre o destino que lhe cumpre. / E deseja o destino que deseja; / Nem cumpre o que deseja, / Nem deseja o que cumpre. [Ricardo Reis]
Este é um bolo adequado à nova geração dos nossos governantes. Soletram-se os ingredientes, demora-se no mexer da colher de pau, deleita-se o paladar no vagaroso saborear.
Imaginemos o nosso ministro olheirento com um avental e uma colher de pau, rodeado de uma organizadíssima mesa de cozinha, a tarde por conta dele (provavelmente a mulher aproveitou para arejar, de forma a não assistir à dolente epopeia culinária). Rigoroso, lê os ingredientes e coloca-os a todos à sua volta, perfilados e obedientes:
Para o recheio:
Uma tablete de chocolate para culinária com, pelo menos, 50% de cacau
Dois decilitros de leite gordo
Seis colheres de sopa de açúcar
Duas gemas de ovo
Um pouco de canela em pó
Duas colheres de chá de licor (qualquer um, se caseiro melhor)
Para a massa:
Seis ovos
Trezentas gramas de açúcar
Cento e cinquenta gramas de farinha
Para a forma:
Margarina e farinha para barrar
Começa por ligar o forno, aproveitando para derreter a margarina dentro da forma – grande com buraco a meio, ou sem buraco. Com um pincel barra bem o interior da forma e depois peneira-a de farinha.
A seguir parte os seis ovos para dentro de uma tigela, mistura o açúcar e bate tudo por muito tempo, até a massa duplicar e ficar quase branca. A seguir junta a farinha, bate mais um pouco. Leva a massa ao forno, em lume médio, por 30 a 40 minutos (tem de certeza palitos de vários tamanhos para espetar no bolo, apreciando a cozedura).
Enquanto coze o bolo parte a tablete aos bocadinhos para dentro de uma panela pequena, junta o açúcar e o leite quase todo e um bocadinho de canela, deixa ao lume brando até derreter o chocolate, mexendo. Bate as gemas com uma colher de pau e mistura o resto do leite, deitando depois no chocolate derretido para engrossar, mexendo sempre. Quando está quase ferver, junta o licor e desliga o lume.
Logo que o bolo se apresentar cozido deixa-o arrefecer um pouco, desenforma e parte-o ao meio, para poder rechear com a papa de chocolate. Junta as duas metades e cobre-o com a papa sobrante. Nesta altura já a excelentíssima esposa deve ter regressado, preparadíssima para deglutir o bolo que amorosamente o queridíssimo fez.
Quem sabe as qualidades escondidas que terá o nosso ministro olheirento?
Beach House
drifting in and out, see the road you’re on
you came rolling down the cheek
say just what you need
and in between it’s never aš it seems
help me to make it
help me to make it
if you build yourself a myth
know just what to give
what comes after this
momentarily bliss
consequence of what you do to me
help me to make it
help me to make it
found yourself in a new direction
eons far from the sun
can you come when they come to reach you
let you know you’re not the only one
can’t keep hanging on
to all that’s dead and gone
if you build yourself a myth
know just what to give
do you lie?
we’ll let the ashes fly
help me to make it
help me to make it
1.
Estava à sua frente, de olhar perdido, os cabelos brancos apertados num carrapito, os pés arrastando-se pelo corredor, as mãos entortadas segurando numa carteira pesada, os lábios abertos e arfantes. Que sim, que não sabia da porta de saída. Indicou-lha com simpatia. Ela agradeceu.
Apressadamente dirigiu-se ao carro. Estava um calor sufocante e a ginástica não ajudava. Desenvencilhou-se dos sacos lancheiras e carteiras. Deu à chave e abriu as janelas.
Depois de dar a volta ao estacionamento viu-a outra vez, descendo vagarosamente a rua, mais triste e perdida ainda. Parou ao lado e perguntou se queria que a levasse a algum lado. Respondeu-lhe desesperada que ia para longe. Respondeu-lhe que morava lá muito perto, que a poderia levar até casa. Ela quase chorou e passou todo o caminho a dar graças a Nossa Senhora e a contar as desgraças familiares, de parcas heranças e inexcedíveis traições, de gente moribunda e só, de gente viva e só, de gente velha e só.
Quando chegaram disse-lhe que não precisava de conhecer-lhe o nome, pois só quem acreditava sabia que os anjos não se nomeiam.
2.
Sábado ao fim da manhã num hipermercado, carrinhos cheios de compras nas filas das caixas. As pessoas aguardam pacificamente, de ombros caídos. À sua frente uma velhinha toda de preto, com o cabelo todo branco, bem enrugadinha, mirradinha, empurra com o pé um saco com compras, enquanto espera, ela irrequieta, com três ou quatro objectos periclitantes nas mãos. Pergunta-lhe se não seria melhor ir para a caixa prioritária ao que ela respondeu que vinha de lá.
A senhora da caixa despacha rapidamente as compras, diz-lhe o preço e ela interrompe o labor de ensacar para tirar as notas, com os dedos bem atrapalhados, do porta-moedas. Pergunta-lhe se quer ajuda. E guarda os pertences em sacos, que coloca em sacos para que a velhinha os possa levar. Agradece, muito digna, com tremor no canto dos lábios, e lá vai dobrada sob o peso do saco com sacos.
Resistir à falta de paciência.
Resistir às insónias.
Resistir ao aperto de ansiedade.
Resistir ao medo.
Resistir à vontade de virar todas as mesas.
Resistir à anarquia da indisciplina.
Resistir à desorganização.
Resistir ao tão fácil abandono.
Resistir ao conforto de desistir.
Resistir ao imenso bocejo.
Resistir à avalanche da mediocridade.
Resistir à fealdade.
Resistir à resistência.
Sayaka Ganz
Vamos deixando fugir as medidas que nos cabem
a nossa exacta sensação de desperdício
infinitos caminhos solitários
nas cidades brancas de paixões.
Vamos deixando ruir as carícias que nos sobram
a nossa imensa noção de infinito
desperdícios solidários de carícias
desmedidas ânsias sem razões.
Não tenho tido vontade de escrever. Tudo já foi dito, repetido, estando as palavras gastas de tanto usadas. Não há paciência para queixumes nem para optimismos estéreis, irrazoáveis e insultuosos para quem vê o dia a dia cada vez mais acabrunhante.
Não tenho a arte de me evadir do quotidiano. Apetecia-me fechar as portas e desaparecer. Não me apetecem combates nem defesas de princípios. Os princípios apenas contribuem para que nos sintamos ainda mais fora de tom. Estamos em ciclo de penúria intelectual e moral, para além da financeira. Os fundamentalismos dos novos moralistas, a importância dos costumes, a omnipresença da devassa das vidas privadas, a mistura entre o poder e a mediocridade, esmagam o individualismo e tomam conta das opiniões.
Não se trata da ausência de liberdade mas da incapacidade de viver e sentir essa liberdade. O medo vai empurrando o que sobra da dignidade. É preciso um esforço inaudito para arrastar as fibras que se revoltam contra a prepotência da estupidez e da falta de vergonha.
Não tenho vontade de escrever porque digo o mesmo que todos os outros e a falta de originalidade é patética. Patética e vazia.
Talvez amanhã.
Também li e reli o Manifesto. É um texto em que se agrupam as palavras esquerda, livre, democracia, justo, direito, desenvolvimento, humano, e outras tão interessantes como estas, num todo vazio de conteúdo, de ideias, de qualquer política concreta, de qualquer prática explícita que possa materializar uma que seja dessas palavras.
Escrever esquerda, gritar esquerda, pintar esquerda, não transforma nada em mais desenvolvimento, nem em mais igualdade, nem em mais trabalho, nem em mais direitos ou mais justiça social. Não é por dizer muitas vezes determinadas palavras que a realidade muda. Do que a esquerda precisa é de medidas, aquilo que, por muito pouco politicamente correcto que seja apontá-lo, foi o que o governo de Sócrates (o primeiro) fez: na educação e na aposta nas energias renováveis, por exemplo. E no entanto, os mesmos que tudo fizeram para denegrir e boicotar essas medidas e que contribuíram objectivamente para que a direita tomasse o poder, manifestam-se agora contra sectarismos e apelam aos homens e mulheres livres que lutem pela esquerda.
Onde estão as propostas da esquerda? Onde estão as soluções da esquerda - como seria a austeridade? Despedíamos a troika? Como seriam os incentivos à criação de emprego? E os horários de trabalho? E os subsídios, voltavam? E os impostos, desciam? E a idade da reforma? E o tratado orçamental? Como seria a tal agenda para o desenvolvimento? O que fariam de diferente e como?
Também li e reli o Manifesto, com um cansaço e um desencanto cada vez mais pesados. Mas o problema deve ser meu. Provavelmente terei de concluir que a esquerda que se manifesta não é a minha. Ou que eu não sou de esquerda.
Para adoçar os dias vinagrentos que vivemos, nada melhor que... doce de vinagre.
É muito fácil, muito doce e muito bom. Nunca tinha ouvido falar deste doce, fora da minha família mas, numa pesquisa pela internet, li variadíssimas receitas de doces semelhantes. Mas não iguais. Convém aceitarmos que é um doce hipercalórico, cheio de açúcar e que engorda imenso, para que não cortemos nas quantidades e não usemos leite magro, só para que aceitemos melhor o pecado. Pequemos, mas a sério e sem desculpas tolas.
Deita-se 1/2 litro de leite gordo (o do dia é melhor) num tacho largo (eu uso sempre tachos grandes, taças grandes, tudo enorme) e põe-se ao lume. Quando levantar fervura deita-se uma colher de chá (ou de sobremesa) de vinagre para cortar o leite e junta-se 1/2 quilo de açúcar. Deixa-se ao lume, mexendo, até fazer ponto de estrada (ao raspar o fundo com uma colher de pau abre-se uma estrada que não se desfaz de imediato). Deixa-se arrefecer e mistura-se, com cautela, as gemas batidas de 1/2 dúzia de ovos. Depois de tudo bem misturado leva-se de novo ao lume brando, mexendo sempre para cozerem as gemas.
Apaga-se o lume e deixa-se arrefecer. Batem-se as claras em castelo bem firme e misturam-se com o preparado anterior, quando este já esfriou. Come-se depois de uma passagem pelo frigorífico.
É mesmo delicioso. Para não me esquecer das porções lembro-me sempre que é meio de tudo - 1/2 l de leite, 1/2 Kg de açúcar, 1/2 dúzia de ovos.
Temos cada vez mais medo de ouvir as notícias. A Europa esboroa-se. A corrida aos bancos, a bolsa em descida abrupta, a vez do ataque a Espanha, a Grécia à beira do abismos e, com ela, todos nós e todos os outros.
Ninguém faz ideia do que se vai passar mas o espectro da bancarrota, de grandes tumultos sociais, do fim próximo das democracias e da paz, minam a capacidade de avaliação e de decisão das pessoas individualmente, dos governos e dos Estados colectivamente.
Como foi que nos quisemos
que pacto de sangue e lágrimas nos acamou
com que cimento nos colamos
entre rasgos de fúria e nuvens de incertezas
que profecia realizamos
nesta partilha de ser e sentir
nesta labuta de amar que nos calhou
que em tão certa aliança resultou?
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