Estive a ver, na SIC notícias, uma conversa entre Mário Crespo e Maria José Nogueira Pinto, sobre uma proposta apresentada por ela para a requalificação da Baixa-Chiado.
Gostei de ter ouvido a necessidade de requalificação do centro histórico de Lisboa, no que diz respeito às áreas comercial e habitacional, à devolução da cidade às pessoas. Lisboa está a cair, deserta e perigosa, com escassos redutos escondidos, quase num limbo como a ilha de Avalon, em condomínios luxuosos. Depois há algumas zonas buliçosas, como a do Bairro Alto, que está linda e animada.
Na estrada marginal, de Lisboa a Cascais, multiplicam-se as casas praticamente arruinadas, antigos palácios quase acastelados, dignos de príncipes e princesas encantados quando, em criança, me dirigia à praia de Carcavelos. Uns a seguir aos outros, terrenos onde cresce a tristeza e o abandono, vidros partidos, telhas caídas e cores desbotadas, com manchas velhas e descuidadas.
No interior, as terras foram rejeitadas, as aldeias estão despovoadas, restando as pedras das paredes nas casas e as portas meio fechadas, rangendo com saudades de moradores. Nas cidades satélites proliferam gigantes gaiolas de cimento, com cores impossíveis de descrever, arquitecturas com esquinas criadoras e originais, roupas estendidas nas janelas e automóveis em cima de passeios estreitos e enganosos. Pizzarias, lavandarias e pequenos centros comerciais, eles próprios já meio abandonados, por outros maiores, com mais viço e grandeza, com um ciclo de vida curto e miserável.
Não sei como é possível repovoar os centros históricos das cidades, os centros históricos das aldeias, os centros, enfim. Deve ser tão difícil e complicado como recentrar as nossas próprias prioridades. Dentro de nós, também temos uma certa tendência centrífuga, refugiando-nos nos arredores da vida.
A pena de morte é das mais cruéis contradições que existem nas nossas sociedades. A punição é exactamente a mesma acção que causou a punição. É um triste ciclo vicioso.
Seja o que for que seja quem for tenha feito, a sociedade organizada não pode cometer o mesmo crime do acusado.
Gosto de dias de chuva, em que a música nos embala, as notas dedilhadas nas guitarras, ou as teclas marteladas no piano, nos devolvem alguma esperança, alguma segurança, alguma certeza de que a chuva limpa o ar, empapa a terra, é indispensável à vida.
Gosto de dias de névoa, em que a música nos guia como um farol longínquo, silvando, que ritmadamente nos devolve a luz, o rumo.
Nestes dias de desalento, as janelas meio abertas são a fronteira entre a essência e o descartável. O silêncio adocicado pela música fortalece-me. Sinto o manto acolhedor da casa, grande e calorosa pela tua presença, pelo ritmo dos teus gestos, pela solidez do teu amor.
[Michel Camilo (piano), Tomatito (guitarra flamenca), Juan Luís Guerra (artista convidado) – Spain again (2006)]
Ainda não percebi muito bem se a indignação pela publicidade positiva paga, presumivelmente pelo governo, se deve a esse facto, ao panegírico à figura de Manuel Pinho, ou à redução do papel de Cavaco Silva a um mero observador silencioso…
Há muitos anos, em pleno Processo Revolucionário Em Curso (PREC), no famoso ano de 1975, todos os dias fervilhavam informações, sussurradas meio a medo, meio a gozo, meio a sério, no núcleo mais importante de coscuvilhice lá do bairro, o mini mercado da Dona C...
Por entre bocas ociosas, assustadas, mentirosas, circulavam todos os dias ameaças de golpes militares ou civis, ajustes de contas, terríveis massacres, faltas de comida, conselhos de açambarcamento, difamações, explorações politiqueiras de frases ou intenções que se adivinhavam nas entrelinhas, sempre sem rosto nem ponta de meada que se desenredasse.
Com o advento da democracia todos queriam participar e, de facto, participavam, numa corrente de boatos que os escassos responsáveis políticos moderados, ou simplesmente sensatos, queriam estancar com a frase: o boato é a arma da reacção.
Esta recente fase bloguística lembra-me um pouco essa época. Na rede tudo se transmite a grande velocidade, sem necessitar de nome ou de rosto. Aqui pode insinuar-se, insultar-se, sugerir-se, sempre com saltos e piruetas argumentativas, sem cuidar de imaginar os contornos ou as consequências resultantes e, principalmente, de responder por eles.
Portugal anónimo, servil, humilde e de chapéu na mão, dá largas à frustração usando a sua mais hábil e antiga arma vingativa: a maledicência.
Muito se tem falado e escrito sobre a ausência de debate interno no PS, sobre a desertificação à volta de Sócrates, sobre o perigo de autismo do poder, quando há tiques autoritários num partido com maioria absoluta.
O congresso do PS, o tal partido maioritário no poder, com maioria absoluta e um chefe com tiques autoritários, arrisca-se, dizemos todos, a ser um grande e hipócrita aplauso à linha dura de governação.
Não estando obviamente em causa a liderança de José Sócrates, deveriam estar em causa as políticas sectoriais, discussões ideológicas e da praxis do partido e do governo, alternativas ou justificações da falta delas. Acredito que o próprio Sócrates e, sem dúvida, o governo, sairiam rejuvenescidos e reforçados politicamente, independentemente da legitimidade que ninguém contesta.
Se há temas controversos no nosso socialismo e que têm sido objecto de duras críticas dentro do núcleo duro do PS (António Vitorino, Jorge Coelho, Maria de Belém Roseira, e outros), são os temas da saúde, concretizadas nas tentativas de reformas do SNS, com a concentração e reestruturação das maternidades e dos serviços de urgência, com a reorganização e implementação das unidades de saúde familiar, com a introdução de taxas de utilização, com a escassez de recursos, etc.
Há umas semanas ficou a saber-se que Correia de Campos iria propor a discussão de uma moção sectorial sobre a saúde, o que aplaudi, esperando o debate e a clarificação do rumo que este PS pretende dar a este sector.
O DN em "positivo e negativo" (e o Diário Económico), para além de informar que há mais de 30 moções sectoriais a serem discutidas no congresso, sobre temas diversos, afirma que Correia de Campos retirou a proposta de discussão sobre a saúde.
A confirmar-se esta notícia, parece-me um estrondoso erro e uma enorme desilusão no que diz respeito ao PS, ao governo e, sobretudo, a este ministro.
Nas áreas mais difíceis e mais polémicas espera-se que haja coragem e humildade para defender e procurar soluções. Se o problema é o medo de ver as opções tomadas e a tomar criticadas ou desaprovadas, não se percebe, de facto, para que servem estes congressos. Da mesma forma também não entendo a ausência de pedidos de discussão sobre este tema por parte dos críticos de Correia de Campos.
O país deu um mandato ao PS para governar quatro anos. O PS é constituído não apenas pelos nomes sonantes do aparelho, mas por todos os seus militantes. Estes, pelos vistos, não parecem estar à altura da sua responsabilidade. Esperam calados, não se sabe bem é o quê.
Não percebo muito bem o interesse jornalístico de uma grandeentrevista a Alberto João Jardim. De facto, não temos muitos programas humorísticos, mas Alberto João Jardim não tem mesmo graça nenhuma.
Também não entendo muito bem qual o objectivo político de Marques Mendes ao dar cobertura às diatribes de Presidente do Governo Regional da Madeira. Ou da factura dos “cocktails”, ou da colagem aos que contestam a Ministra da Educação.
Quando chegava à entrada da vila, procurava uma bata branca vestida por um velhote ligeiramente curvado, com uma coroa de cabelos, do lado de fora da porta verde da Farmácia Nacional, e uma velhota baixa, com bata e carrapito, que espreitava pela porta entreaberta da sua casa. Mal podia conter a alegria que queria soltar-se da garganta, ao correr para aqueles velhos, que de ano para ano encolhiam, embranqueciam, mas sempre a esperavam.
Depois era o cheiro da casa, o frio da sala, a braseira, os lençóis gelados, o tabuleiro de manhã, na cama, o café com leite demasiado doce, o pão com queijo, o creme da cara endurecido, que mal se espalhava, a água gelada da torneira que se misturava com a água a escaldar da cafeteira, as pedras da escada do quintal, o poço, o galinheiro, as mulheres embrulhadas em mantas com os olhos pequeninos que levavam os nomes de remédios inexistentes em fragmentos de papel, escritos com lápis, numa letra tremida no esforço da aplicação, o chão de azulejo branco sujo de lama, os frascos e os boiões alinhados nos armários de madeira branca.
Depois era o sempre eterno chá antes de ir para a cama, as canecas individualizadas com cenas campestres compradas nas feiras, os biscoitos de azeite, o leite creme com açúcar queimado.
Mesmo agora, no dia em que se decretou que se lembrassem os mortos, como se os mortos não estivessem entranhados em todas as pequenas fibras das casa em que viveram, das ruas que palmilharam, dos vivos que tocaram, parece-lhe ainda ouvir aquelas vozes, ao abrir a porta verde, mesmo em frente à escada que subia quatro a quatro, para dentro da sua infância.