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Das memórias incómodas

por Sofia Loureiro dos Santos, em 23.01.10

 

Isabela Figueiredo

 

As memórias da guerra colonial portuguesa são diferentes para todos os que a viveram.

 

São diferentes para quem vivia na metrópole e que tinha dos colonos uma noção mítica de encontro da terra prometida. São diferentes para quem foi para as colónias porque não encontrava trabalho nem qualidade de vida na metrópole. São diferentes para quem nunca tinha conhecido África e para lá foi combater os turras. São diferentes para quem nasceu nas colónias e essas eram a sua terra. São diferentes dependendo das colónias que se mencionam.

 

Mesmo as palavras que aqui uso intencionalmente – colónias, metrópole, turras – existiam e foram usadas normalmente por todas as pessoas antes do 25 de Abril, arriscando-me a afirmar que apenas uma pequena minoria de cidadãos, portugueses de aquém e de além-mar, as achava estranhas e as punha em causa. Dentro do país e até ao 25 de Abril de 1974, para a imensa maioria da população, Portugal era um Império uno e indivisível do Minho a Timor. A guerra colonial era uma sombra de medo na população, pela natureza da própria guerra. Mas também arriscaria que as motivações políticas dessa guerra eram conhecidas e contestadas por alguns grupos de intelectuais e por alguns militares, tendo-se alargado esse conhecimento à medida que a emigração crescia e observava o que se passava fora das nossas fronteiras.

 

Após o 25 de Abril de 1974 o quadro passou a ser completamente diferente, despertando a nação, palavra que foi banida do nosso vocabulário por muito tempo, para os horrores da exploração do homem pelo homem, na metrópole e nas colónias, para o racismo, para os direitos dos povos à sua autodeterminação e independência, levando à inevitável orgia de culpabilização, vergonha e remorsos tão aprazível ao sentir português.

 

Por isso mesmo, para os que regressaram, apesar de, ao contrário do que já ouvi afirmar, Portugal ter conseguido assimilar em pouco tempo uma enorme quantidade de pessoas regressadas do ultramar, os retornados, muitos totalmente espoliados do que tinha sido a sua vida, sem reconhecer o clima, a sociedade, a revolução, o atraso social em que se vivia, foram olhados como o expoente do mal do antigo regime, personificando o opressor em relação ao explorado e oprimido preto das ex-colónias.

 

Caderno de Memórias Coloniais é um livro que relata, na primeira pessoa, uma experiência de vida em Moçambique, da pequena burguesia, que trabalhava e sentia como sua aquela terra. É um livro de amor pela personagem paterna, herói e devastadora desilusão por não ser herói mas apenas pessoa. É um livro de desabafo e terapêutico, como o são os livros escritos com o despojamento, a crueza e a rudeza deste. É um livro muito bem escrito que nos transporta para dentro e para fora da autora, em fragmentos que se entrelaçam sem aparente intencionalidade. É um livro que me parece não pretender fazer história nem doutrina revelando, no entanto, uma parte da verdade que poucos têm coragem de abordar, por todos os motivos que referi e por muitos outros que desconheço.

 

Independentemente daquilo que, como sociedade, integrámos e assimilámos do que era o Portugal anterior à revolução e o Portugal que fomos e que somos desde a revolução, vale a pena ler o livro de Isabela Figueiredo por ele próprio, como objecto literário, porque nos enfrenta e nos faz pensar, provoca e comove, porque nos acrescenta.

 

Nota: Ler também Eduardo Pitta, Rui Bebiano, ABM, Francisco José Viegas e Fernanda Câncio.
 

(Também aqui)

 

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publicado às 12:22



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